I - A Lenda
Muito se tem contado nos últimos anos acerca do Caminho de Santiago. Depois de ter sido um caminho percorrido por peregrinos na Idade Média, eis que ganhou novo fôlego mercê, principalmente, do livro de Paulo Coelho, “O Diário de um Mago”. Este livro teve a virtude de despertar em muita gente a imaginação e a busca do fantástico, como se fazer o Caminho, percorrer os seus mais de mil quilómetros a pé, operasse uma transformação profunda na personalidade de cada um. É facto que esta transformação por vezes acontece, mas limita-se a casos muito raros de pessoas realmente empenhadas na busca do seu verdadeiro Eu.
De um caminho iniciático nas suas origens remotas, transformou-se numa rota turística, levando as pessoas a fazerem-no sem saberem bem porquê, por curiosidade e porque virou moda. Para Fulcanelli, o misterioso autor do livro “O Mistério das Catedrais”, O Caminho é uma viagem simbólica que todos os filósofos e alquimistas devem fazer. Nas suas palavras, “A concha (vieira) de Compostela (…) serve na simbólica secreta paras designar o princípio Mercúrio (a água benta dos filósofos), também chamado Viajante ou Peregrino. É usada misticamente por todos os que empreendem o trabalho e procuram obter a estrela (compos stella)”.
O termo peregrino apareceu na Idade Média para designar os cristãos que viajavam até Roma ou Jerusalém para visitar os lugares sagrados ou, como auto punições para pagarem promessas ou cumprirem punições canónicas. A partir mais ou menos do século IX, Compostela passou a estar incluída nos lugares de peregrinação do cristianismo. No entanto, como veremos em próximas crónicas, o Caminho de Santiago não é de origem cristã, é muito mais antigo que o próprio cristianismo. Nesta iremos falar da lenda, ou das lendas, que há várias.
A lenda principal diz-nos que Tiago, o Maior, para o distinguir do outro Tiago, era um dos apóstolos preferidos de Jesus, juntamente com João, de quem era irmão, ambos filhos de Zebedeu e Maria Salomé. Depois da crucificação de Jesus, Tiago terá ficado em Jerusalém para continuar a obra do Mestre, tendo a sua acção provocado a ira de Herodes Agripa que terá dado ordem para o decapitarem. Não se sabe bem se morreu por decapitação ou apedrejamento, prática muito comum entre os judeus. O que é facto é que morreu em Jerusalém, e a lenda começa, justamente, após a sua morte.
Alguns dos seus discípulos meteram o corpo num barco e deixaram-no à deriva no Mediterrâneo, entregando à Divina Providência o destino dessa tumba flutuante. Foi assim que, à deriva, o barco atravessou todo o Mediterrâneo, passou o Estreito de Gibraltar e subiu pelo Atlântico, para ir encalhar na Galiza, num local chamado Iria Flávia, que depois se veio a chamar Padron, no rio Ulla.
Parece que alguns dos discípulos embarcaram no mesmo barco à deriva. Chegados à Galiza, ao reino que na altura se chamava Louve e que era governado por uma rainha que também se chamava Louve, desembarcaram o corpo e colocaram-no sobre uma pedra enorme, que se derreteu sob o corpo moldando um belo sarcófago.
Os discípulos foram pedir à rainha um local apropriado para sepultar o corpo, contando-lhe os muitos milagres que Tiago realizara, como o milagre da viagem e de terem aportado àquela costa, e o milagre da pedra se moldando para formar a tumba.
A rainha mandou-os falar com o rei de Espanha e este, ao fim de longo diálogo, acabou por autorizar que o corpo fosse sepultado naquelas terras.
Louve ficou extremamente irritada quando os discípulos lhe transmitiram a autorização do rei de Espanha. Deu-lhes então um carro puxado por dois bois para transportar o corpo e disse-lhes que escolhessem o lugar que mais lhes agradasse. Mas os bois eram dois touros bravos. Os discípulos, que não desconfiavam de nada, levaram o corpo montanha acima e deram de caras com um dragão que cuspia fogo e ameaçava matá-los. Fizeram o sinal da cruz e, imediatamente, o dragão se partiu pelo meio. Quando viram que os bois eram touros selvagens, fizeram novo sinal da cruz e os touros se tornaram mansos como cordeiros.
Então os bois, sem que ninguém os guiasse, levaram o corpo para o palácio da Louve que, ao ver os prodígios que tinham acontecido, dedicou o seu palácio a Santiago.
Esta é talvez a lenda principal, que deve muito à imaginação e fantasia. O reino de Louve, assim como a rainha do mesmo nome, provavelmente nunca existiu. Como veremos mais tarde, “Louve” tem um significado especial na tradição galaica. Não é possível, mesmo entregue à Divina Providência, que um barco saindo da Palestina à deriva possa ter atingido a costa da Galiza. O melhor que poderia ter acontecido era encalhar na praia de uma das muitas ilhas gregas, na costa norte de África, ou na costa do sul da Europa. Também não é possível que os discípulos tenham obtido autorização do rei de Espanha, pois esta não existia na altura.
Uma variante da lenda diz que, após o barco ter aportado na ria, o corpo foi transportado para uma colina que hoje se chama Pico Sacro, e aí teria sido sepultado. Depois terá sido de novo transladado para outro local chamado Arca Marmorica, perto da localidade de Amorea, e ficou esquecido durante vários séculos.
Somente no ano de 813 ou 830, no reinado de Afonso-o-Casto, o corpo foi reencontrado por um eremita chamado Pelágio, cujo nome significa “homem do mar”. Assim, por milagre, Pelágio foi informado do local onde se encontrava a sepultura de Tiago por umas luzes sobrenaturais que dançavam sobre o túmulo. Outra versão diz que se tratava de uma estrela a qual, como a estrela de Belém, teria ficado pairando sobre o local do túmulo do apóstolo. Daqui o nome de Compostela (campo da estrela).
Santiago transformou-se no padroeiro das Espanhas quando apareceu na batalha de Clavijo, em 844, travada contra os mouros, brandindo uma espada flamejante, espalhando o morticínio entre os infiéis e levando as forças do rei Ramiro à vitória, salvando para o cristianismo todo o norte da Península Ibérica.
Apesar da lenda poder contribuir para a solidificação das estruturas da Igreja na região e em todo o mundo cristão, não deixou, no entanto, de provocar algumas reticências nos meios tradicionais cristãos. Por este motivo, foi proposta uma outra variante em que os discípulos teriam transportado o corpo dos arredores de Granada, no sul da Península, tentando assim tornar mais plausível a viagem do barco á deriva, pois era mais lógico ter encalhado no sul, na costa mediterrânica, do que na costa atlântica da Galiza.
Há quem afirme também que Tiago andou pregando pela Península, acompanhado de poucos discípulos, dado o seu carácter irascível, e por um cão. Veremos mais tarde o significado do cão. É claro que esta ideia não tem qualquer base de suporte, uma vez que historicamente está estabelecido que Tiago nunca deixou a Palestina.
Uma lenda não é um documento histórico, nem é História, é apenas um conjunto de elementos retirados da tradição que vai sendo construído ao longo do tempo por via das crenças e do imaginário popular. Uma lenda não é criada por ninguém, cria-se a si própria recebendo os contributos da ansiedade, dos sonhos, da fantasia do ser humano que, espera sempre um milagre ou algo de fantástico para compensar as dificuldades da sua vida. Depois as lendas podem ser moldadas ou utilizadas para servirem a determinados objectivos. Evidentemente que o bispo de Iria Flávia, que oficializou a descoberta do túmulo de Tiago, não queria saber se a chegada do barco milagroso era verdadeira. Para ele, a lenda servia perfeitamente aos seus desígnios de transformar o local no campo sagrado onde repousavam os restos do apóstolo Tiago. É deste modo que se estabeleceu também a concha (vieira) como símbolo do peregrino a Santiago de Compostela.
Segundo algumas versões, o barco, quando encalhou na margem do rio Ulla, estava coberto dessas conchas. Segundo outras, o barco não conseguia atracar e assim, dois cavaleiros meteram-se à água para ajudar a tripulação e, quando saíram da água viram-se inteiramente cobertos de conchas.
Não importa saber que essas conchas não se fixam, não se colam a coisa nenhuma, vivem móveis na lama marinha. Mas é interessante saber que essas conchas, vieiras para os peregrinos, se chamam “mérelles”, do nome de uma aldeia marítima perto de Noya. É interessante também saber que “mérelles” significa “mãe da luz”.
Tudo isto, a viagem milagrosa, a vieira, a estrela, foi sendo acumulado para transformar o local no mais importante centro de peregrinação da cristandade, sobrepondo-se a Jerusalém pelas dificuldades e pelos perigos em demandar esta cidade.
Esta lenda tem o mesmo valor que muitas outras, como a lenda do rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda, ou como a lenda da busca do Graal. Não corresponde a factos concretos mas, pode conter alguns elementos de verdade, distorcidos pelo tempo, pelas crenças e pelo imaginário. De notar que o barco com o corpo de Tiago surge do mar e entra numa ria da Galiza; o túmulo foi descoberto por um homem do mar, Pelágio; o símbolo do peregrino é uma concha marítima. O mar, como veremos em futuras crónicas, tem particular importância na cultura e tradição da Galiza.
Mas, há sempre um mas nestas coisas em que uma pesquisa mais profunda revela, talvez tenha sido, efectivamente, descoberto um túmulo contendo um corpo, ou os restos dele. Só que esse corpo, com toda a probabilidade, não era o do apóstolo Tiago.
Nos seus primórdios a Igreja viu-se a braços com uma infinidade de desvios à sua ortodoxia, que foram aparecendo por todo o mundo cristão da altura. Esses desvios foram chamados de heresias e, para combatê-los, foram realizados inúmeros concílios e sínodos. Os elementos considerados heréticos não sofriam outra pena além da expulsão e excomunhão. Só mais tarde a Sagrada Inquisição passou a assá-los em fogueiras.
É muito provável que o corpo descoberto por Pelágio fosse o do bispo Prisciliano, que viveu, mais ou menos, entre 340 e 385. Prisciliano criou uma doutrina completamente diferenciada e adversa da doutrina ortodoxa. O seu movimento, que durou ainda alguns séculos depois da sua morte, foi chamado de “priscilianismo”. Era um movimento que poderíamos chamar de gnosticismo primitivo e teve forte influência na Igreja da Galiza e do norte de Portugal.
Prisciliano era acusado de artes mágicas, de admitir mulheres em igualdade de condições com os homens, nos seus rituais e nas leituras da Sagrada Escritura. Era acusado do uso de ervas para fins medicinais e praticas abortivas. Era acusado também de ser um estudioso da astrologia cabalística.
Ao fim de vários concílios e sínodos, em que se procurou trazer Prisciliano de volta para o seio da doutrina oficial da Igreja, acabou por ser condenado à morte e decapitado, no ano 385, juntamente com seis dos seus discípulos, tornando-se assim o primeiro herege justiçado pela Igreja Católica.
Existe uma clara correspondência entre a lenda de Santiago e a história de Prisciliano. Não é credível que o corpo de Tiago tenha ficado oculto por oito séculos e só tenha sido descoberto em 813 ou 830. Tratando-se de quem era, um dos discípulos preferidos de Jesus, é lícito pensar-se que as primeiras comunidades cristãs da Galiza não esquecessem o local do seu sepultamento, mas que o transformassem rapidamente num lugar sagrado de veneração. Tratando-se do corpo de Prisciliano, dada a pressão da Igreja combatendo a heresia e a perseguição aos seus seguidores, é natural que a sua sepultura tivesse sido ocultada.
O priscilianismo ficou de tal modo enraizado na consciência colectiva da Galiza e na sua tradição, que há quem chame ao Caminho de Santiago o Caminho Prisciliano de Compostela. Há até um filme realizado por Luís Bunuel com esse nome, embora o seu verdadeiro título seja “A Via Láctea – O Estranho Caminho de Santiago”.
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