domingo, 6 de maio de 2007

MISTÉRIOS - II - Ísis e o culto das Virgens Negras

No antigo Egipto Ísis tinha um lugar muito especial no panteão dos deuses. Era a deusa das deusas. Um papiro antigo diz-nos que ela era a doadora da vida, a fonte de conhecimento, a serpente Kundalini, que era uma deusa pois era filha das estrelas, que era a natureza em toda a sua pujança. Ísis era a esposa e contraparte feminina de Osíris, mais especialmente, Ísis era a alma apaixonada, representando todos os níveis, estados, formas e experiências do amor que a alma humana é capaz.
No fascínio egípcio pelo mistério da alma da mulher, Ísis era a esposa leal, a amante, a mãe, a sedutora, a bruxa, a prostituta, a guia, a protectora, a enfermeira, a irmã, a companheira e sempre, acima de tudo, o poder leal ao lado do trono.
Ísis representava todas as formas de ligação, de amizade, de amor e de sexo criados entre as pessoas. Ela era a electricidade, a magia, a química desses laços e de todos os seus perigos.
No antigo Egipto havia muitas deusas, cada uma com a sua devoção especial. Na verdade, não eram deusas diferentes, eram manifestações diferentes de uma única deusa, Ísis. Era algo de semelhante com o que se passa no mundo católico, onde as várias virgens e Nossas Senhoras são aspectos diferentes de Maria, mãe de Jesus.
Maria, na tradição cristã, corresponde a uma pessoa que realmente existiu. Quanto a Ísis, há a tendência de se pensar que não era mais do que uma deusa criada pelo imaginário egípcio e, portanto, fazendo parte da mitologia. Mas essa é uma leitura fácil e pouco atenta pois, por detrás dos mitos esconde-se uma verdade que temos alguma dificuldade em aceitar. Essa verdade é a de que em épocas remotas, os deuses viveram na Terra juntamente com os homens. Isto é confirmado pela Bíblia (Génesis, 6.4). Desta forma Ísis não é apenas o fruto da fértil imaginação egípcia, deve ter sido alguém que existiu de facto, e que os homens consideraram tratar-se de uma deusa.
Os gregos identificavam Ísis com as suas próprias deusas, também aqui nas várias expressões da mesma divindade: como fornecedora do grão e protectora das colheitas, ela era Demeter; como deusa do amor, ela era Afrodite; como esposa do rei dos deuses, ela era Hecate, a deusa grega da magia, cujo nome derivava directamente do egípcio, onde “palavras mágicas” era “heka”; como protótipo da mulher humana, ela era Io, amada por Zeus e transformada numa vaca, que é a mesma deusa egípcia, uma das expressões de Ísis, Hathor.
Não sabemos como é que eram os egípcios antigos. Sabemos como são hoje, uma população predominantemente árabe, resultado de grandes migrações e guerras de conquista que ocorreram no Médio Oriente, mas que não tem nada a ver com a população egípcia do tempo dos faraós. Há quem lhes atribua a cor vermelha, algo semelhante aos índios da América do Norte, e há quem afirme que os antigos egípcios eram negros, ainda que as características negróides não sejam evidentes nas imagens que nos deixaram gravadas nos seus monumentos. No entanto, essas características negróides como, por exemplo, os lábios grossos, não são típicas de toda a raça negra. A rainha de Sabá, que terá seduzido Salomão com a sua extraordinária beleza, era, aparentemente, negra. São Bernardo, autor de muitos poemas e sermões, num dos seus poemas dedicados a Salomão e à rainha de Sabá, manifesta a sua grande devoção pela cor negra: “O, filhos de Jerusalém, sou negra, mas sou bela.”
Ísis é muitas vezes representada com a cor negra ou escura. O seu culto foi extremamente importante no Egipto antigo. Nos tempos de Ptolomeu (300 a. C.), a comunidade devotada a Ísis era chamada de Ecclesia, uma estrutura e organização adoptadas pela assembleia-geral grega e, através de Bizâncio e Alexandria, pela Igreja Cristã. No entanto, somente as formas exteriores foram preservadas. Perdeu-se o que de mais íntimo havia no culto da Senhora, como Ísis era chamada. O verdadeiro significado da Senhora foi enterrado debaixo das camadas patriarcais e dos dogmas da interpretação cristã. Isis era mostrada como mulher completa em todos os seus aspectos e estágios da vida. A sua feminilidade era estudada tão ao pormenor que as muitas das suas faces ou expressões eram personificadas em outras tantas divindades numa combinação de diferentes coroas e ornamentos da cabeça. Toda a expressão masculina tem uma contraparte feminina no reconhecimento da dualidade universal da natureza, mas os muitos aspectos de Ísis, identificados pelas coroas e vários atributos, representam as muitas faces do amor experimentado no mundo humano.
A questão de ser irmã e, ao mesmo tempo, esposa de Osíris, choca um pouco a nossa cultura ocidental de origem judaico-cristã, pois trata-se, efectivamente, de uma situação incestuosa. Mas esta questão tem algumas explicações que nos poderão ajudar a compreendê-la.
Os faraós, ainda que pudessem dispor de concubinas ou até de haréns com dezenas de mulheres, só podiam ter como esposa oficial uma sua irmã ou meia-irmã. Como a faraó se assumia como filho dos deuses, sendo ele próprio também um deus, só podia casar-se com quem tivesse a mesma origem divina, portanto uma sua irmã de sangue. A origem mais remota deste costume vamos encontrá-la na mitologia da Suméria, onde os deuses para poderem herdar o poder tinham que estar casados com irmãs ou meias-irmãs. Entre eles o incesto não era um assunto tabu, era antes recomendado.
Não sabemos qual a razão deste comportamento, talvez uma forma de evitar que os deuses e seus filhos se cruzassem com os seres humanos, o que, apesar de tudo e como confirma a Bíblia, não conseguiram evitar.
Os hábitos sexuais dos deuses chocam os nossos conceitos da cultura ocidental. O incesto era normal e recomendado, houve até um deus, o principal do panteão sumério, Anu, que teve relações sexuais com uma sua neta. O adultério era uma situação vulgar, tanto da parte masculina como da feminina. Nos templos dedicados a Ishtar praticava-se a chamada “prostituição sagrada”. Não se tratava propriamente de prostitutas que ali exerciam a sua profissão, eram mulheres mães de família que, para aumentarem os rendimentos da casa se prostituíam, com o conhecimento e apoio do marido. Ou então, raparigas que pretendiam casar e constituir família, prostituíam-se para conseguirem um dote.
Embora não haja referências de que estes costumes tenham sido levados para o Egipto, sabemos no entanto que a vida dos egípcios decorria com grande liberdade. O drama conhecido de Ísis e Osíris, em que este foi morto por Seth, tem origem nesses costumes.
Os deuses egípcios eram os mesmos da Suméria ou, pertenciam à mesma família. Os deuses sumérios eram doze e, de certa forma, dividiram a Terra entre eles. O chefe desses deuses chamava-se Anu, o qual tinha dois filhos, Enki e Enlil. Na divisão da Terra, coube a Enki o governo das terras que viemos a conhecer como Egipto. No Egipto, Enki tomou o nome de Ptah, e governou, segundo a crónica impressa nas tabuinhas de argila sumérias, durante 9.000 anos. Ptah passou o poder a seu filho RA, que na suméria se chamava Marduk. A RA sucedeu seu filho Shu, casado com sua irmã Tefnut. Segundo a tradição egípcia, foram estes deuses que estabeleceram o modelo adoptado pelos faraós: a esposa oficial do rei era a sua própria irmã. Shu e Tefnut cederam o governo a dois dos seus filhos, irmão e irmã, Geb e Nut.
Com os descendentes de Geb e Nut, tudo se complicou. Com os seus dois filhos casados com as próprias irmãs, Geb e Nut não tiveram outra solução senão dividir o reino entre eles: Asar (Osíris) e Ast (Ísis) ficaram com o Baixo Egipto, Seth e Néftis ficaram com o Alto Egipto. Isto foi uma grande complicação. Os deuses, tal como nos é descrito em toda a mitologia grega, sofriam das mesmas paixões que mais tarde os humanos vieram a receber por herança. Eram gananciosos, sedentos de poder, cometiam adultérios, incestos, eram ciumentos, etc. Assim, como nos conta Plutarco, historiador grego do 1º século da nossa era, Osíris era filho de Ra, numa relação que este manteve com sua neta Nut. Ísis era filha de Thot, que também se relacionara com Nut. Desta forma, Osíris, que era filho do grande deus Ra era o herdeiro principal. Mas pelas regras dos deuses, o herdeiro deveria ser Seth, pois ele e sua irmã e esposa Néftis, eram filhos legítimos de Geb.
Sabemos o que se seguiu. Set acabou por assassinar Osíris e tomar o poder sobre todo o Egipto para si. Para que Osíris não pudesse ser ressuscitado, separou o seu corpo em vários pedaços, 14 segundo uns, 42 segundo outros, e atirou-os ao Nilo. Ísis partiu em busca desses pedaços de Osíris e conseguiu reunir quase todos, menos um, o falo. Mas mesmo assim, por artes mágicas, conseguiu ser impregnada por Osíris e dar à luz o filho Hórus. Criado em segredo, Hórus ficou com a incumbência de, quando chegasse à idade adulta, vingar o pai.
Aparentemente, Osíris morrera sem deixar herdeiro. Seth tentou forçar Ísis a dar-lhe esse herdeiro, o que garantiria o poder no Egipto para a sua descendência. Mas Ísis, apesar de feita prisioneira por Seth, recusou-se e conseguiu fugir com a ajuda de Thot. Procurou o filho Hórus onde o deixara escondido e descobriu que ele agonizava devido à picada de um escorpião. Ela não tinha o poder de o curar e pediu a ajuda dos céus. Thot, senhor das artes mágicas e do conhecimento, desceu dos céus e curou o menino.
Quando Hórus se tornou adulto e depois de aprender tudo quanto tinha a aprender com os deuses que se tinham mantido fiéis a Osíris e Ísis, apresentou-se perante o Conselho dos Deuses e reclamou para si o trono do seu pai. Depois de várias peripécias em que tentou desacreditar Hórus, e não conseguindo convencer a assembleia, Seth saiu furioso gritando que somente pelas armas o assunto poderia ser resolvido. E assim foi, depois de várias e sangrentas batalhas aéreas, terrestres e marítimas, Seth foi derrotado. O Conselho dos Deuses deliberou então entregar todo o poder sobre o Egipto a Hórus e Seth recebeu um novo território a leste. Na Bíblia, Caim depois de ter assassinado Abel e ter caído em desgraça perante Deus é também enviado para terras do leste: “Caim saiu da presença de Javé, e habitou na terra de Nod, a leste do Éden”.
Como acontecera na Mesopotâmia, também no Egipto os deuses transmitiram aos homens as formas de adoração religiosa. Inicialmente, acredito que essa foi uma maneira dos deuses tentarem ensinar aos homens os mistérios da vida e do universo, mas também vejo nisso uma forma de dos deuses manterem o controlo sobre os destinos humanos. Através de rituais e sacrifícios, mantinham os humildes e ignorantes seres humanos sob a sua estrita observação e controlo. Tirando os ritos da natureza desenvolvidos um pouco por toda a Europa e os ritos xamânicos, estes também da natureza mas espalhados por todo o planeta, foi no Egipto que o sistema religioso atingiu a sua forma mais expressiva. No Egipto, pode-se dizer, nasceram as grandes religiões que têm controlado o mundo nos últimos milénios. Não sabemos até que ponto as ideias religiosas egípcias terão influenciando de forma decisiva as religiões do Oriente, nomeadamente da Índia e da China, mas acredito que, se procurarmos bem, somos capazes de encontrar pontos de ligação. Entretanto o judaísmo, o cristianismo e, mais tarde, o islamismo, tiveram a sua génese primordial no Egipto.
Inicialmente, no Egipto, a religião tomou a forma de “Mistérios”. Havia os “Mistérios de Osíris” e os “Mistérios de Ísis”, pois foram estes dois seres, pela sua história tornada mítica, que impregnaram a mente egípcia. Por outro lado, havia os “Mistérios Interiores”, só acessíveis a uma elite, e os “Mistérios Exteriores” de acesso público.
Para Timothy Freke e Peter Gandy, no seu livro extremamente bem documentado, “Os Mistérios de Jesus – seria o Jesus Original um Deus Pagão?”, na essência dos “Mistérios Interiores” estavam os mitos relativos a um deus-homem que morria e ressuscitava e que era conhecido por muitos nomes na região do Mediterrâneo oriental: era Osíris no Egipto, Dionísio na Grécia, Átis na Ásia Menor, Adónis na Síria, Baco em Itália, Mitra na Pérsia. O Cristianismo nasce assim destes “Mistérios”. Veja-se a relação entre os “Mistérios de Osíris” e a biografia de Jesus que nos foi transmitida nos Evangelhos:
• Osíris é Deus tornado carne, o salvador e “Filho de Deus”.
• O seu pai é Deus e sua mãe uma virgem mortal.
• Nasce numa gruta ou numa humilde manjedoura a 25 de Dezembro perante três pastores.
• Oferece aos seus seguidores a oportunidade de renascerem através dos ritos do baptismo.
• Transforma milagrosamente água em vinho numa cerimónia de casamento.
• Entra triunfalmente na cidade montado num burro enquanto as pessoas acenam com folhas de palmeira para o exaltar.
• Morre na Páscoa como sacrifício pelos pecados do mundo.
• Depois da sua morte desce ao inferno, depois do terceiro dia ressuscita e sobre ao céu em glória.
• Os seus seguidores aguardam o seu regresso como juiz dos Últimos Dias.
• A sua morte e ressurreição são celebradas numa refeição ritual de pão e vinho que simbolizam o seu corpo e o seu sangue.
Estes “Mistérios Interiores” não correspondem exactamente ao que se passava nas antigas Escolas de Mistérios egípcias. Na realidade chegaram até nós através dos movimentos gnósticos de Alexandria, portanto já complementados e modificados pelas crenças gnósticas. No entanto, sabendo-se que estes movimentos gnósticos já exerciam a sua actividade antes do cristianismo, pois conhecem-se grupos gnósticos que existiram uns bons 100 anos antes da nossa era, é espantosa a semelhança das suas crenças e do que transmitiam através de iniciações, com a história de Jesus que nos é contada nos Evangelhos.
O ponto que poderia tornar-se mais polémico é aquele que se refere à morte na Páscoa, uma vez que a Páscoa era uma festa judaica que celebrava o êxodo do Egipto do povo judeu liderado por Moisés. Embora a história de Moisés seja também polémica, que irá ser tema de uma destas crónicas dedicadas aos mistérios, esses grupos gnósticos eram essencialmente constituídos por judeus que viviam em Alexandria. Nada mais natural, assim, que eles tivesses acrescentado a questão da Páscoa.