sexta-feira, 15 de abril de 2011

Conversas com Samuel Dalatando

Conversas com Samuel Dalatando
I – A Fraternidade Rosa-Cruz – 7ª Parte

Samuel voltou de Brasília e deixou-me um recado no hotel dizendo que ficaria no Rio mais alguns dias e que assim poderíamos encontrar-nos. Telefonei-lhe logo que recebi o recado e combinámos encontrar-nos num restaurante muito conhecido na Av. Vieira Souto, em Ipanema, junto da praia do Arpoador. Sabemos que hoje esse restaurante serve também um cozido à portuguesa de sabor carioca, na época não o servia, mas a sua comida era bem diversificada entre frutos do mar, que em Portugal tomam o nome genérico de marisco, e cozinha brasileira.
Cheguei primeiro e escolhi uma mesa junto da calçada, em que se podia ver o mar e receber uma brisa fresca para tentar amenizar o calor carioca que, na altura, por volta das oito horas da noite, estava acima dos 35 graus centígrados. Samuel chegou poucos minutos depois, acompanhado de uma bela mulher, alta, loira e de olhos azuis. Samuel apresentou-a como uma jornalista inglesa que estava no Rio para fazer uma reportagem sobre os “pivetes”, gíria que designa as crianças de rua. Nesta crónica vou chamar-lhe Lara, pela sua semelhança com Julie Christie, a “Lara” do filme “Dr. Jivago”.
Samuel disse que Lara era uma amiga muito especial, mas pareceu-me que entre os dois havia algo mais do que amizade. Disse-me também que era uma pessoa interessada nos temas que costumávamos discutir nos nossos encontros, além de gostar de pesquisar sobre assuntos esotéricos.
- Sim? E já chegou a algumas conclusões? – Perguntei no meu melhor inglês.
- Embuste. – Respondeu Lara.
- Embuste?
- Sim, embuste. Esse termo era muito usado por Francis Bacon quando se referia às muitas correntes maçónicas e rosacruzes da sua época. Para ele, a maioria desses movimentos não passava de um embuste.
- Tenho a impressão de que não era bem assim. – Respondi. – Bacon não condenava propriamente esses movimentos, mas a credulidade e superstição a eles ligados.
- Vejo que você também tem pesquisado o assunto. – Disse Lara.
- É verdade. Bacon é um elemento crucial para o entendimento do que se passava no seu tempo a respeito da Fraternidade Rosacruz e do que se iria passar depois. Ele achava que toda a história sobre Christian Rosencreutz não passava de um embuste, no que estou de acordo com ele.
- No entanto ele caiu no próprio embuste. – Comentou Samuel, enquanto saboreava um pedaço de lagosta. – O seu livro “Nova Atlântida” está recheado de ficção e idealismo, um embuste que ele condenava nos outros.
Ao escrever estas palavras, neste momento, em finais da primeira década do século XXI, não posso deixar de pensar que, afinal, o mundo não mudou nada em relação à época de Francis Bacon. A mesma liberdade “provisória” resultante da grande crise da Igreja Católica que deu origem ao movimento da Reforma acontece hoje com o declínio do seu poder temporal. A grande diferença está talvez na seriedade de intenções: Bacon e Andrea preconizavam uma sociedade ideal cristã, livre dos vícios que a enfermavam na altura. Hoje essa seriedade parece não existir, pois o “embuste” faz parte, cada vez mais, de todas as igrejas e organizações que têm aparecido como erva daninha em solo fecundo. À falta dos aguilhões da Igreja do passado, as pessoas estão prontas a acreditar em tudo, desde que consigam um pouco de ilusão de segurança. A seriedade foi embora, dando lugar a um imenso “embuste” em todos os níveis e, à medida em que se vão descobrindo coisas do passado, graças aos avanços da ciência, mais esse embuste toma formas gigantescas.
- Você sabe que a Fraternidade Rosacruz não é muito bem aceite na Inglaterra. – Disse Lara.
- Porquê? – Perguntei.
- Por causa da sua associação à chamada “República de Cromwell”, no único período da história em que a Inglaterra deixou de ser uma monarquia. O inglês é mental e visceralmente monárquico. Na ausência do sistema monárquico ele sente-se perdido.
- Interessante, - comentei, - mas por outro lado foi em Inglaterra que nasceu a primeira Loja Maçónica, e foi em Inglaterra que nasceu uma coisa chamada “Golden Down”, uma espécie de ordem hermética e mágica, com referências claras ao rosacrucianismo. Era também inglês um dos grandes magos, chamemos-lhe assim, dos primórdios do século XX.
- Refere-se a Aleister Crowley, evidentemente…
- Sim, refiro-me a ele. Então não percebo porque é que o termo rosacruz é tão mal visto em Inglaterra.
- Pelo motivo que apontei antes. A magia faz parte da tradição inglesa que a herdou, provavelmente, dos celtas. Portanto, não há nada de extraordinário que Aleister Crowley, que foi considerado um mago, seja perfeitamente aceite, assim como organizações de pendor mágico.
Ao ouvir isto lembrei-me imediatamente das lendas do Rei Artur, ou Saga Arturiana, ou ainda Ciclo Arturiano, como já vi alguém chamar a um período difícil de localizar tanto no tempo como no espaço. Julga-se que essas lendas se terão passado cerca do ano 500 ou 700 da nossa era, numa tal de Bretanha, que também não se sabe se é a região do noroeste da França, ou alguma região da Inglaterra. De qualquer das formas, verdade ou não, os ingleses chamaram a si as honras da história, como se tivesse passado realmente em território britânico.
Não conheço ninguém que não se tenha sentido fascinado pelas lendas arturianas e pelos cavaleiros da Távola Redonda na sua busca do Graal, transformado mais tarde por imposição cristã na taça que teria recebido o sangue de Cristo. Mas o universo em que a saga se passa, apesar das adaptações cristãs, é um universo celta. Excalibur Merlin, a Dama do Lago, Avalon, Camelot, é todo um universo mágico muito próprio da cultura celta, apesar também de não se saber onde os celtas foram buscar essas coisas, talvez as tenham herdado de um povo misterioso que antes dos celtas habitaram a Península Ibérica e o sul da Europa, os lígures.
Aleister Crowley foi sem dúvida o expoente dessa tradição nos primórdios do século XX. Foi admitido na “Golden Down” nos finais do século dezanove, mas logo em 1900 foi nomeado líder da Ordem em Inglaterra. Figura polémica, foi considerado muitas vezes um mago negro e associado ao nº 666, o número da Besta no Apocalipse, mas isto tem alguma explicação. Esteve no México, onde tentou comunicar-se com entidades espirituais do mundo azteca. Vai para o Sri Lanka onde passa a dedicar-se à prática do ioga. Esteve em vários centros budistas da Índia e da Birmânia, onde realizou alguns estágios.
Mas a viagem mais importante e que marcou definitivamente a sua vida foi a viagem ao Egipto em 1904, com a sua companheira Rose Edith Kelly. Rose, que era médium, recebe a determinada altura uma mensagem de Horus destinada a Crowley, dizendo para ir ao museu de Boulak, no Cairo. No segundo andar Crowley descobriu-o dentro de uma caixa de vidro. Era uma estela em que Horus aparecia sob a forma de Ra-Hoor-Khuit. Curiosamente, o número de registo dessa figura no museu era o 666, o número da Besta, designação pela qual Crowley passou a auto-designar-se.
A experiência de contacto com Horus, o grande deus egípcio, filho de Ísis e Osíris, não ficou por aqui. Durante três dias Rose tornou-se o canal de Aiwass, mensageiro de Hoor-paar-Kraaat, o Senhor do Silêncio, que ditou para um Crowley estupefacto, pois nem ele mesmo queria acreditar naquilo, um texto anunciando uma nova era para a humanidade. Esse texto, dividido em três capítulos, foi posteriormente publicado sob o título “O Livro de Lei”. No primeiro capítulo é Nuit quem fala, o Princípio Feminino; no segundo é Hadit, o Princípio Masculino; no terceiro é o próprio Hórus que fala. Estas três entidades incumbiram Crowley de divulgar a sua mensagem.
- Falando de Crowley, - disse eu, - creio que, para além de todas as suas aventuras, ele foi o mensageiro da “Nova Era”. As transformações que o mundo sofreu durante este último século são tremendas. Será que o “Amor”, como anunciou Crowley no seu livro psicografado quando da sua viagem ao Egipto, é realmente o “motor” da “Nova Era”? Se ele era e se intitulava a si próprio, “A Grande Besta”, que amor é esse? Voltamos ao mito da “Queda” e da sedução?
Samuel e Lara olharam um para o outro, surpresos com a questão que eu colocava. Foi Samuel que respondeu.
- Essa é uma questão muito complicada. Primeiro teríamos que definir o que é o “Amor”, principalmente o amor anunciado pelos arautos dessa “Nova Era”. À medida em que o homem, e particularmente a mulher, se vem libertando dos grilhões do passado, participamos de uma sociedade cada vez mais permeável a vícios e violência. No meu tempo de estudante não me lembro de se falar em drogas. Hoje é o que se vê. No meu tempo as pessoas passeavam na rua, nos jardins. Hoje têm medo. Não me parece que seja esta a sociedade do “Amor”. Quando os manifestos rosacruzes foram lançados no início do século dezassete, preconizavam uma sociedade melhor, mas uma sociedade com princípios cristãos. Hoje até o próprio cristianismo está completamente desvirtuado. A religião perdeu o seu poder de regular a sociedade.
- De acordo. – Disse eu. – Não sei onde é que li isto, acho que algo acerca do misticismo, mas li que os maiores místicos eram aqueles que mais tentações sofriam para cair no vício e que era tremenda a sua luta para não se deixarem seduzir por essas tentações. Acho que faz algum sentido se pensarmos que o ser humano é um ser dual e que o santo e o demónio coexistem dentro de si. Mas voltando ao tema predilecto destas nossas conversas, a Fraternidade Rosacruz, o que me dizem dessa Fraternidade nos tempos actuais?
Desta vez foi Lara que respondeu
- O que existe hoje foi sendo criado ao longo do tempo, mas acho que teve origem numa certa explosão mística e esotérica que aconteceu nos finais do século dezanove e início deste século vinte. Há um autor inglês, de que não me lembro o nome, que classificou essa época como a “Era da Insanidade”.
- “Era da Insanidade”? – Estranhei.
- Julgo que ele classificou essa Era dessa forma porque aparentemente, nos finais do século dezanove e princípios do século vinte, antes do eclodir da Primeira Grande Guerra, tudo parecia misturar-se, religião e esoterismo apareceram em certos casos de mãos dadas, como foi o caso de Rudolf Steiner, que se envolveu com pastores evangélicos da Alemanha, que lhe pediram ajuda para a falta de espiritualidade que viam nas suas igrejas e, como resultado, Steiner acaba por ajudar a fundar uma nova igreja, a “Comunidade Cristã”.
- De facto, - atalhou Samuel, - são dessa época nomes muito importantes para o rosacrucianismo, incluindo o Steiner. Estou a lembrar-me de Helena Blavatsky e da sua Sociedade Teosófica, de Max Heindel e da sua Fraternidade Rosacruz, da figura mítica do Conde de Saint-Germain, de Papus, de Harvey Spencer Lewis e Aleister Crowley, de que já falámos.
- O que para aí vai… - disse eu. – Saint-Germain é muito anterior, século dezoito.
- Mas há relatos que afirmam que ele viveu antes e depois desse século dezoito. – Disse Lara.
- Acredita mesmo nisso? – Perguntei.
- Porque não? – Respondeu ela. – As pessoas acreditam em tanta falsidade, porque é que não posso acreditar que Saint-Germain viveu duzentos ou trezentos anos? Tudo faz parte do embuste.
- Quer dizer que essa Era da Insanidade significa apenas que tudo não passa de um embuste?
- Não necessariamente. – Respondeu Lara. – Para mim o embuste está no oportunismo de muitos que beneficiam do conhecimento de alguns.
- Não compreendo…
- Repare, - continuou Lara, - Samuel nomeou alguns nomes muito importantes que souberam, de alguma forma, ainda que não totalmente conseguida, alijar uma certa carga ancestral religiosa. O embuste está nos que se aproveitaram da situação com fins menos confessáveis.
- Como assim? – Perguntei.
- Tirando algumas correntes da Maçonaria que se mantêm fiéis à tradição e não procuram explorar ninguém, apesar de em alguns casos haver manifestações fortes de egos, tudo o resto é pompa e circunstância. É uma feira de vaidades.
Naquele momento pensei que Lara estava exagerando. Hoje, depois de muito pesquisar e de experiências frustrantes que me aconteceram, já não penso que tenha exagerado muito. De facto, com o declínio do poder temporal da Igreja Católica, assistimos à proliferação e inúmeras igrejas e seitas, que apenas existem na pressuposição de ajudar os que as procuram, mas que na verdade servem como meio de negócio, captando dinheiro dos seus membros. Não preciso de dar exemplos, é só olhar à nossa volta e ver o que se passa nesse aspecto. O mesmo acontece com associações ditas iniciáticas, ou filosóficas, ou esotéricas – é tudo negócio ou exposição de vaidades na tal pompa e circunstância que disse atrás. E o que dizer da enorme quantidade de “profetas” que enchem a Internet com as suas “profecias” de desgraça, prevendo e anunciando, naturalmente, o fim do mundo ou a passagem para um outro grau de existência que ninguém sabe o que é? Embuste é de facto a palavra certa para designar quase tudo o que se passa actualmente.
A noite já ia adiantada e a conversa parecia não ter fim, embora por vezes as ideias se repetissem, como já acontecera em anteriores conversas. Havia no entanto algo que me perturbava e que gostaria de ver discutido.
- Existe uma verdade que permeia todos esses movimentos e até muitas das religiões. – Disse eu. – De onde é que ela vem, foi criada por geração espontânea ou vem de longe, dos primórdios do tempo?
- Julgo que ambos os casos são verdadeiros. – Respondeu Samuel. – Por um lado há algo que nos vem dos tempos mais recuados e que tem vivido permanentemente na nossa lembrança. Foi assim que, apesar da imposição das “trevas” pela Igreja durante séculos, nada se perdeu. Por outro lado o ser humano é um criador, ele pode elaborar as ideias que lhe vieram da memória ancestral. Afinal, tudo se resume à Teosofia, que é a base dos ensinamentos desses movimentos filosóficos e esotéricos, enquanto as religiões se perdem nos meandros da Teologia. Parece que ambas são uma e a mesma coisa, mas não. É esta a diferença fundamental, entre aquele que procura o conhecimento de Deus através do aprofundamento interior, e aquele que resume a sua meditação à necessidade de provar a existência de Deus e a validade dos dogmas.
- A Amorc, fundada por Spencer Lewis, é também resultado da Teosofia? – Perguntei.
Samuel sorriu ao ouvir esta minha pergunta, que ele achava que eu tinha engatilhada há muito tempo, mas que nunca chegara a formulá-la.
- O estabelecimento da Amorc, - respondeu, - não foi nada pacífico. Lewis e Crowley lutaram durante muitos anos pelo domínio do mercado americano.
- Mercado?
- Sim, mercado. Não estranhe porque de facto era disso que se tratava. Spencer Lewis começou por fundar uma igreja na Califórnia. Essa foi a sua primeira experiência. Ele era o que se chamava na altura, um publicitário. Hoje chamar-se-ia, provavelmente, um especialista em “marketing”. Como tal ele vislumbrou que o mercado americano era um campo fértil para as ideias rosacruzes.
- Mas não recebeu ele um mandato para levar a Rosacruz para a América? – Perguntou Lara.
- Ele dizia que sim, que tinha recebido essa mandato numa iniciação em Toulouse, França, mas os seus detractores dizem que ele nunca foi iniciado em Toulouse, nem recebeu qualquer mandato. Se recebeu alguma iniciação terá sido na OTO (Ordo Templis Orientis), na Alemanha, com cujo grão-mestre manteve relações. Crowley era o representante da OTO na América. Lewis acabou por ganhar a guerra que manteve por muitos anos, pois Crowley foi à falência e a OTO deixou de influenciar as coisas na América devido à penúria em que entrou na Alemanha.
- Mas não respondeu à minha pergunta. – Disse eu.
- Ah! Se a Amorc é uma herdeira da Teosofia? Eu diria que sim, da mesma forma que a Fraternidade Rosacruz fundada por Rudolf Steiner na Califórnia, também deve muito à Teosofia. Há muito de Teosofia e Gnosticismo nas instruções aos membros. Lewis, inteligentemente, fez remontar esses ensinamentos ao Antigo Egipto, criando uma certa competição com a Maçonaria.
- Dizem até que Akhenaton terá sido o seu primeiro Imperator…
- É claro que não. Não sei porque é que atribuem a origem a Akhenaton, se não existe nenhuma documento antigo que comprove isso. Se a Amorc possui esse documento, que o mostre, para eliminar as dúvidas. Reportam-se também a Tutmés III, que teria organizado a primeira reunião rosacruz, mas isso é uma fábula. Mostrem os documentos que comprovem isso.
- Mas você acha, usando os termos de Lara, que a Amorc é também um embuste? – Perguntei.
- Não. Não acho que seja um embuste no sentido em que os seus ensinamentos são dos mais correcto que já encontrei. Dificilmente poderemos encontrar uma organização tão bem estruturada como a Amorc. Os seus ensinamentos são correctos e muito completos e preservam a liberdade de cada um, não impondo nada a ninguém. Nisso, Lewis e seu filho Ralph realizaram uma obra notável. Infelizmente não foi prosseguida pelos que continuaram a obra e é por isso que a Amorc está hoje em decadência.
- Essa decadência não será porque as pessoas hoje querem resultados imediatos e a Amorc oferece uma progressão de muitos anos?
- Também será por isso. Mas principalmente devido à forma como tem sido gerida ultimamente.
- Acha que pelo facto de ser uma organização aberta, quero dizer, que aceita qualquer pessoa desde que pague as quotas, terá isso contribuído para essa decadência?
- Esse é um dos motivos. Outro motivo será, em meu entender, a preferência que passou a ser dada à frequência dos Organismos Filiados em detrimento dos chamados membros de Sanctum, que garantia uma certa privacidade, tornando-se, na verdadeira tradição Rosacruz, membros invisíveis. A Amorc cometeu o erro de tentar atrair membros de Sanctum para os Organismos Filiados. Mas há outros erros.
- Outros erros?
- Sim. Por exemplo, o chamado quarto manifesto emitido pela Amorc e difundido pelo mundo inteiro, na presunção de que a Amorc seria a herdeira dos manifestos do século dezassete. Ora esse manifesto, pretendendo chamar a atenção para determinadas realidades infelizes do mundo de hoje, era em si também muito infeliz e, naturalmente, ninguém quis saber dele para nada. Por outro lado, assumindo-se como herdeira desses outros manifestos, é um erro lamentável, pois os primeiros manifestos foram originados dentro do cristianismo, propunham uma sociedade nova mas cristã. Se a Amorc se diz não religiosa, que aceita no seu seio qualquer religião, então não pode assumir-se como herdeira desses manifestos antigos.
- De acordo. E quanto ao martinismo?
Desta vez foi Lara quem resolveu responder.
- Existem várias escolas martinistas, a que está dependente da Amorc é uma delas. Segundo sei, o martinismo actual tem origem numa certa reconstrução efectuada por Papus e outros, supostamente baseados em antigas instruções de Saint-Martin. Provavelmente até é verdade, pois sabe-se que Saint-Martin não estava de acordo com invocações de figuras angélicas. Essa magia cerimonial introduzida por Pasqualy não está presente nas ordens martinistas actuais, embora certos rituais possam levar a pensar em magia cerimonial, mas ficam apenas na intenção, nada mais. Essa magia cerimonial terá sido levada por Willermoz para o seu Rito Escocês Rectificado da Maçonaria.
A noite já ia adiantada, mas antes de nos prepararmos para regressar aos respectivos hotéis, precisava ainda da opinião de Samuel e, talvez de Lara, sobre algo que parecia ter ficado obscuro nas diversas conversas que tivemos.
- Vocês acham que os “Invisíveis” existiram mesmo, como organização secreta e, por esse motivo, não identificáveis ao longo da História? E qual a necessidade de secretismo?
Foi Samuel quem respondeu.
- Acho que sim. Não como uma organização secreta, mas como uma corrente que veio trazendo determinados conhecimentos primordiais até aos nossos dias. Nessa corrente, os mais conhecidos foram os alquimistas. Mas não foram apenas eles os responsáveis por manter viva essa tradição primordial. Muitos outros desconhecidos, mestres desconhecidos, foram passando a palavra de geração em geração. Enfim, todos aqueles que contribuíram, de alguma forma, para a elevação do ser humano.
- E porquê o secretismo? – Insisti.
- O secretismo era importante, digo mais, essencial para a sobrevivência, pois não podemos esquecer o papel que a Igreja desempenhou na perseguição e morte dos hereges.
- Hoje esse secretismo continua a ser importante?
- Sim. Apesar as aparências, continua a ser perigoso trilhar determinados caminhos, e ninguém sabe o dia de amanhã. Não podemos esquecer que o fanatismo continua bem vivo. Alguém escreveu que o anonimato é a única garantia do mundo contra o mundo.
Esta foi a última vez que conversei com Samuel sobre a Fraternidade Rosacruz. É provável que alguma confusão tenha ficado nas várias conversas que tivemos e que transcrevi, na medida possível em que me lembrava do que falámos. É provável também que muita coisa tenha ficado esquecida. No entanto, quanto mais fui aprofundando as pesquisas acerca da história desses “invisíveis”, mais fui tendo a noção de que se tratou de gente muito especial, que apesar do perigo para as suas próprias vidas, conseguiram trazer até nós essa “luz” que nos vem do passado. Para eles o meu mais profundo respeito e reverência.