terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Adopção de crianças por casais homossexuais

“Todos os seres nascem iluminados mas é preciso uma vida inteira para descobri-lo” (Buda)

O tema é sensível, delicado, e a sua abordagem requer um certo grau de imparcialidade e tolerância da parte de quem quiser, realmente, aprofundar o tema, sem cair em noções gastas e estereotipadas que já não respondem aos tempos presentes.
A condenação automática da adopção de crianças por casais homossexuais resulta dos arraigados conceitos judaico-cristãos de organização de família em termos hetero, em que o pai exerce a sua função masculina e a mãe a feminina. Portanto, as referências da criança são perfeitamente definidas, sem confusões, e assim poderá crescer num ambiente sadio e tornar-se um adulto consciente e responsável. Esta forma idealizada raramente se realiza na prática devido a uma infinidade de razões que enfermam a sociedade.
A razão principal de tal sistema não funcionar prende-se com os próprios progenitores que, apesar de hetero, muitas vezes são incapazes de fomentar uma educação equilibrada, transmitindo às crianças os seus medos, fobias, paranóias, etc. Em casos extremos a criança é o “bombo da festa”, sobre quem descarregam as suas frustrações. Tenho uma amiga que é médica pediatra e trabalhou muitos anos no hospital da Estefânia em Lisboa e que chegou a ter autênticos ataques de nervos ao ver e tratar crianças que ali chegavam com vários traumatismos, vítimas da fúria, da raiva do pai ou da mãe, e até dos dois. E não eram casos isolados, acontecia às dezenas ao longo do ano. Se o sistema funcionasse bem, não haveria tantos adultos enchendo os consultórios de psiquiatras e psicanalistas.
Um dos motivos apontados em desfavor do processo de adopção por homossexuais é o do enxovalho permanente que tais crianças sofreriam na escola, porque, as crianças são cruéis por natureza. Embora os tempos sejam outros e não sei até que ponto esta premissa é verdadeira, a crueldade das crianças é o reflexo da educação que recebem em casa e da convivência na escola com outras crianças criadas sob os mesmos padrões morais de comportamento. Como exemplo, se um pai em casa tem problemas com a sua própria sexualidade e manifesta os seus temores de forma ruidosa e jocosa contra quem não seja hetero, cuja orientação sexual considera aberrante, é natural que a criança seja veículo na escola dessas ideias.
A falta de referência paterna ou materna num casal homossexual não será motivo suficiente para que a adopção seja impedida. O mundo está cheio de crianças sem essas referências: filhos de mães solteiras, filhos e viúvos ou viúvas, filhos rejeitados para a Casa Pia e outros estabelecimentos do género. É toda uma panóplia de situações que faz com que muitas e muitas crianças cresçam sem essas referências.
Considerar que o ambiente homossexual é um ambiente pervertido, comparado com o ambiente hetero, é, desde já, uma ideia pervertida. As perversões existem em variadas formas, mas não necessariamente e apenas em ambientes homossexuais.
As crianças atiradas para qualquer instituição tipo Casa Pia ou colégio interno, passando inclusive por seminários, são crianças rejeitadas do seio da própria família, por falta de recursos ou por distorcidas ideias de que a educação em colégio interno é uma educação esmerada. Em qualquer dos casos a criança perde as suas referências afectivas e é integrada em padrões de comportamento que deixam sequelas psicológicas para o futuro. Um dos males, senão o maior, é a exploração a que ficam sujeitas por parte dos mais velhos, a cumplicidade entre esses mais velhos alguns empregados, do que resulta a chantagem que inibe a criança de se queixar, por não saber a quem e pelas consequências que uma queixa teria em termos de castigos corporais e outras sevícias. A pedofilia é um fenómeno emergente da clausura e dependência emocional a que as crianças ficam sujeitas. É uma situação típica em todos os sistemas de clausura: prisões, colégios internos, conventos, seminários, etc.
Presume-se que uma criança criada no seio de uma família tradicional, hetero, será uma criança saudável, sem problemas psicológicos no futuro. Mas na prática as coisas não se passam assim de maneira tão simplista. Em primeiro lugar, a figura da família tradicional está em franco declínio, pois hoje são raras as famílias que se mantêm unidas. Em segundo lugar, não é líquido que o ambiente dessas famílias seja um ambiente saudável. Não raro a criança se vê submetida ao poder autoritário e castrador dos pais, limitando ou impedindo o crescimento de uma personalidade sadia, cortando à nascença quaisquer veleidades de iniciativa e anulando a sua criatividade. Em muitos casos as crianças transformam-se em “robots” imitadores das neuroses caseiras para, dessa forma, conseguirem apoio e carinho. Noutros casos, por rebeldia contra a opressão caseira, entram em esquemas complicados de companheirismo, mais tarde em “gangues” envolvidos em drogas e outras formas de violência.
Os velhos valores que regiam a sociedade estão caducos, não mais respondem às solicitações do mundo actual. Trata-se de uma morte anunciada e irreversível, deixando para trás todos os que se sentem apegados a formas de comportamento que não fazem mais sentido. Esses velhos valores ainda não foram substituídos por novos, nem sei se alguma vez o serão, pois é bem possível que a sociedade se impregne de uma nova filosofia de vida em que os valores estáticos e repressores não tenham mais lugar.
Podemos considerar a homossexualidade uma aberração por ser contra natura, mas também a castidade é e sempre foi uma aberração resultante da nossa herança cultural judaico-cristã. O ser humano não foi criado para reprimir a sua sexualidade. Quando os instintos são reprimidos, sublimados e manipulados, estamos no caminho da mais perfeita alienação. Acabamos escravos inconscientes de padrões de comportamento massificados, criadores de hábitos e confundimos o supérfluo com o necessário, a aparência com a realidade, acima da qual projectamos os nossos desejos e as nossas carências emocionais. Deste modo a vida vai se transformando numa agonia permanente, sem brilho nem criatividade. Um sistema que reprime a sexualidade e sobrevaloriza a castidade e o celibato é um sistema repressor e destrutivo da livre manifestação do nosso verdadeiro ser. O fluxo original instintivo é assim canalizado para a violência, a perversão, a morte, a conquista e o poder. Todo o sistema hierárquico, seja político ou religioso, tende a reprimir a sexualidade porque sabe que um povo não condicionado sexualmente não será fácil de manipular ou catequizar.
O actual mundo da homossexualidade nasceu e cresceu nessa família tradicional e nos princípios repressores que têm moldado a sociedade ao longo dos séculos. A única diferença hoje em relação ao passado é a consciência actual de que a homossexualidade não deve ser ocultada sob rígidos tabus de moralidade e de preconceitos, obrigando as pessoas a uma vida extremamente infeliz, nunca plenamente realizada, levando a estados altamente depressivos e à loucura.
Para concluir, não acho que uma criança criada numa família homossexual venha a ser, necessariamente, homossexual. A Natureza é soberana e ela ditará, na altura própria, a orientação sexual do indivíduo. Uma criança criada nesse ambiente talvez venha a ter uma maior consciência do verdadeiro sentido da vida, um maior respeito pelos outros e pelas suas diferenças.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Pássaros Feridos

Um pássaro ferido, ainda que recuperado do ferimento, dificilmente pode voltar a voar.
Angola foi um sonho, um projecto de vida para muitos que acreditaram, que tiveram fé num império onde o Sol nunca se punha, do Minho a Timor, gerido por um imperador senil e esquizofrénico, escondido na sua toca de São Bento.
Alguém escreveu que a fé é um atributo dos imbecis, pois se dirigida a uma entidade a que chamam Deus, esta nos falta quando mais dela precisamos. Pior é ainda quando essa fé tem por alvo um ser grotesco que, do seu tugúrio onde se esconde do mundo divulga a sua insanidade entre todos aqueles que acreditam nele, que não vêem que se trata apenas de um camponês travestido de ditador, um louco a quem entregaram as chaves das suas vidas.
Depois vieram os outros, a loucura consumada em palavras de ordem, “Nem mais um soldado para Angola!”, a insanidade desbotada em ideologias destrutivas, os egos exaltados nas lutas de poder, tristes fantoches manipulados por interesses obscuros.
No meio da confusão das mentes tresloucadas, os pássaros foram esquecidos, abandonados ao seu destino, entregues à divina providência que nunca se manifesta, perdidos na sua rota de ilusões, pois alguém lhes disse que teriam uma ceia farta, mas nem migalha lhes deixaram. Recolhidos em gaiolas de esterco, engavetados em blocos de cimento a que chamam casas, nem todos conseguiram voltar a bater as asas que os levasse a voar para destinos mais promissores.
Perdida a esperança em dias melhores, perdida a ilusão dos infindos espaços da savana africana, do grande sol poente das tardes mornas, do doce odor da pele de uma cabrita que os esperava, não raro, de porta entreaberta, foram definhando, se perdendo e chafurdando no charco da sociedade permissiva, adúltera, mergulhando no esquecimento temporário que o álcool proporciona.
Pássaros feridos pela ignomínia de um louco e de um povo demente que não sabe honrar os seus filhos e que espera hoje a vinda de um novo louco que venha dar sentido e continuidade à sua demência.

(Escrito em 14 de Fevereiro de 2008, em memória de meu irmão, Mário Valdemar, falecido ontem no hospital Garcia da Horta em Almada, aos 62 anos de idade.)