segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

O Beijo de Judas

Quando a Igreja cristã compilou os quatro Evangelhos que hoje fazem parte da Bíblia, escolheu esses quatro talvez, entre centenas de outros. Porque é que escolheu aqueles e não escolheu outros, quais os critérios que presidiram à escolha, e porque é que só aqueles quatro são considerados canónicos?
O tema desta crónica não é fácil, e é possível que choque algumas pessoas menos habituadas a falar sobre coisas ainda hoje consideradas tabus. Falar-se sobre as origens do cristianismo, sobre Jesus, sobre a história da Igreja até aos dias de hoje, de um ponto de vista diferente daquele a que a religião nos habituou, pode tornar-se penoso para algumas pessoas. Mas isto faz parte do crescimento de cada um, ou nos assumimos como seres livres criados à imagem e semelhança de Deus, ou não. Neste último caso continuaremos a vegetar numa submissão servil a dogmas instituídos para nos dominar, a seguir apáticos os ditames dos pastores e dos sacerdotes, fazendo parte do tal rebanho que se quer dentro do redil, inertes perante os apelos da nossa consciência. Deus nunca nos impôs nenhum tratado nem obrigação, criou-nos para sermos livres e felizes e, como única obrigação, o exercício dos dons que nos foram concedidos.
Não se sabe exactamente qual o fim que levaram todos aqueles textos, ditos Evangelhos apócrifos, que foram recusados. Provavelmente foram destruídos pela Igreja que dava os primeiros passos na sua política para atingir o poder temporal. Eu digo que muito provavelmente foram destruídos porque houve necessidade de esconder uns quantos, muitos deles têm aparecido ultimamente, escondidos nas areias dos desertos egípcios. Alguns desses textos tornaram-se conhecidos, como os casos do Evangelho de Tomé, do Evangelho de Maria (Madalena) e agora, mais recentemente, nos anos setenta, apareceu um papiro de 13 páginas escritas na frente e no verso, a que se deu o nome de Evangelho de Judas.
Transaccionado entre comerciantes de antiguidades, esse papiro andou de mão em mão até acabar por ir parar à posse da National Geographic Society, no início deste milénio, que nomeou uma comissão de especialistas para o traduzir e interpretar. O resultado desse estudo foi divulgado no início deste ano de 2006. Estimam os especialistas que tenha sido escrito no 2º século da nossa era, o que não é de estranhar pois, todos esses textos, inclusive os Evangelhos canónicos, foram escritos muito depois da presumível vida de Jesus. A grande novidade que este Evangelho de Judas nos trás é a de que ele terá sido o discípulo mais fiel de Jesus, que a sua traição, ao identificar Jesus perante os romanos, foi o cumprimento de uma instrução recebida do próprio Jesus. "Tu vais ultrapassar todos. Tu sacrificarás o homem que me revestiu", são as palavras textuais que constam do Evangelho. Para os gnósticos esta frase significava que a delação de Judas contribuía para que Jesus pudesse libertar o seu espírito, livrando-se do seu invólucro carnal, o corpo.
A Igreja sempre soube da existência deste Evangelho, que porventura terá tido algumas cópias que foram convenientemente perdidas. Tanto o primeiro bispo de Lyon, Santo Irineu, como Epifânio, bispo de Salamina, se referem à sua existência em pleno século II. Para Irineu, nos tempos dos apóstolos tinham acontecido diversas tentativas de espalhar o erro e perturbar a união dos cristãos, e que alguns se faziam passar por convertidos, somente para disseminar doutrinas contrárias à da Fé Apostólica. Epifânio teve contacto com algumas comunidades gnósticas, grupos que defendiam uma interpretação esotérica das Escrituras e se afirmavam os verdadeiros cristãos. Defendiam que a pessoa de Jesus Cristo representava o conhecimento da salvação libertador para iniciados. Tanto Epifânio como outros padres da Igreja rejeitaram estas ideias, que ameaçavam desfigurar a pureza da doutrina de Cristo e a unidade da Igreja nascente.
Mas quem eram os gnósticos? Gnósticos quer dizer que aplicavam ou seguiam a gnose, que significa um ecletismo teosófico que pretende conciliar todas as religiões e explicar o seu sentido profundo por meio do conhecimento esotérico e perfeito das coisas divinas, comunicável por tradição e por iniciação. Embora se atribua a sua existência aos séculos II, III e IV da nossa era, os gnósticos são na verdade mais antigos, tão antigos que se sabe da sua existência um século antes do nascimento de Jesus. Os gnósticos beberam as suas crenças e a sua doutrina dos Antigos Mistérios Egípcios, onde já se afirmava que Cristo estava no interior de cada um e onde se ensinava o mito do Salvador, de alguém que viria ensinar as bases do conhecimento divino e que seria sacrificado e morto, ressuscitando ao terceiro dia e elevando-se ao céu em glória. Que me perdoem os crentes, mas a história de Jesus foi construída sobre este mito.
Não é assim de estranhar que todos os Evangelhos tenham uma génese gnóstica e que os primeiros grupos de cristãos fossem constituídos por gnósticos. A existência de tantos textos tem a ver com o facto dos gnósticos serem pessoas instruídas e que cultivavam a filosofia. Enquanto os Evangelhos canónicos pretendem contar a vida do homem Jesus, o Cristo, os outros, inclusive o de Judas, afirmam que o Cristo está no interior de cada um. Mesmo o Evangelho de João, aquele que é considerado o mais esotérico dos quatro e que se distingue dos outros três, o de Marcos, de Mateus e de Lucas, refere-se a Jesus como o Messias, e fala dos milagres como Sinais, referindo apenas 7 milagres atribuídos a Jesus. Para quem duvide da criação da história de Jesus, recomendo a leitura do Salmo 22 do Antigo Testamento, onde está perfeitamente descrita a cena da crucificação.
Os únicos textos que terão sido escritos por alguém do tempo de Jesus são as Cartas de Paulo, que era gnóstico e foi contemporâneo de Jesus. Já não existem dúvidas entre os próprios teólogos, que a maior parte das Cartas de Paulo são falsificações feitas pelos padres da Igreja, salvando-se talvez as três ou quatro primeiras. Nestas Cartas Paulo nunca se refere a Jesus como pessoa com existência física, mas sim como o Salvador, o Cristo, o Messias. Paulo nunca se encontrou com Jesus nem teve conhecimento da sua presença na Palestina, o que não é nada natural pois, sendo contemporâneo teria que ter ouvido falar do Mestre e de tê-lo encontrado ocasionalmente, mesmo que nessa altura ainda não se tivesse convertido à nova religião. Afinal, a população da Palestina nessa altura não era assim tão grande e, alguém com a projecção que se atribui a Jesus teria que ser notado.
Estou a dizer que Jesus não existiu? É provável que tenha existido, não com a dimensão e o drama que os Evangelhos canónicos lhe atribuem, mas talvez como um Mestre que apareceu a revolucionar toda a sociedade judaica da época. Sobre a sua condenação por Pôncio Pilatos e o martírio a que foi submetido até à crucificação, talvez não tenha acontecido nada disto. Não existem quaisquer registos romanos acerca da condenação e paixão de Cristo. Esse é um dado importante porque os romanos eram muito ciosos e tomavam nota de todos os acontecimentos, por menores que fossem. Nenhum historiador da época, e havia vários que deixaram extensas obras, se lhe referiu. O único documento que existe referindo-se a Jesus e à sua história é da autoria de Flávio Josefo, um judeu romanizado, mas cujas crónicas não merecem nenhum crédito, nem dos teólogos. Além disso. Josefo nasceu trinta e tal anos depois de Jesus e a sua referência a Jesus data do ano 90.
Então os Evangelhos, tanto os canónicos como os apócrifos, contam uma história verdadeira? No caso dos canónicos há uma preocupação em torná-los como se fossem biografias de Jesus, contando os seus passos na Terra desde o seu nascimento em Belém. Nos outros parece que se pretende contar a relação de cada um dos discípulos com Jesus. Mas será que contêm alguma verdade?
Para já, Jesus nem sequer nasceu em Belém, quando muito terá nascido em Nazaré, a sua terra de origem. O nascimento em Belém justifica-se porque se atribui a Jesus a descendência de David e, como Belém era a cidade de David, Jesus teria que nascer lá.
A estrela de Belém e a visita dos Reis Magos é outra invenção dos evangelistas. Não houve nenhuma estrela a guiar esses reis e nem sequer houve a sua visita. A menção aos Reis Magos pretende enaltecer o carácter real de Jesus, que teria vindo para governar sobre todos os homens e todos os reis.
Muitas outras incongruências e contradições existem no Novo Testamento, que não vou aqui mencionar, até porque esta crónica não é a propósito delas.
No caso particular de Judas, considerado o traidor, o herético, esse sentimento passado de geração em geração justificou o anti-semitismo e as perseguições a que os judeus têm sido sujeitos desde essa altura. Justificou também a acção nefasta e negra da Inquisição, da qual a Igreja, ainda hoje, não lavou as suas mãos.
O beijo de Judas a Jesus, identificando-o com este acto perante os soldados romanos, parece uma coisa sem sentido. A atitude de Judas era absolutamente desnecessária. Se os romanos perguntassem quem era Jesus, este se apresentaria logo, não precisava que nenhum dos discípulos o denunciasse. Entramos aqui no campo minado dos arquétipos.
Livros espíritas, supostamente escritos por entidades desencarnadas, confirmam, em termos gerais, a história de Jesus, o que não quer dizer que seja verdade. Essa história está registada no Cósmico e tem vindo a ser alimentada pelos milhões e milhões de pessoas que, ao longo dos séculos, acreditaram nela. Trata-se de um arquétipo tão poderoso que inibe as pessoas de pensarem de outra maneira e de tentarem ver onde está a verdade.
Grande parte da doutrina cristã tem quase dois mil anos de existência. Alguns dos seus dogmas precisariam de ser revistos e actualizados, como por exemplo a concepção imaculada de Maria. Desde a mais remota antiguidade que as religiões pagãs nos contam histórias de deuses que geram filhos de mulheres mortais. Segundo o dogma, Jesus não nasceu de nenhum acto sexual, pois Maria era virgem e continuou virgem para todo o sempre. Apesar de já não haver dúvidas de que Jesus tinha irmãos e irmãs, que a família era relativamente numerosa, a Igreja persiste no dogma. Esta, aos olhos da actualidade, não deixa de ser uma visão estranha do papel da mulher e da sexualidade.
A visão gnóstica do nascimento imaculado era apenas simbólica, significava somente que o Cristo que vive no interior de cada um não nasce de uma mulher ou de um acto sexual, mas da pureza que conseguirmos criar no nosso interior – só quando nos purificarmos das tentações terrenas, dos vícios, dos apegos materiais, conseguiremos fazer nascer o Cristo em nós. A Igreja transpôs esta noção para o campo literal, o que é uma ideia absurda e tem muito a ver com o que sempre pensou do papel da mulher.
Nascida numa sociedade patriarcal em que a mulher tinha um papel secundaríssimo, que ainda hoje se reflecte no mundo árabe, a Igreja nunca permitiu que a mulher viesse a ter um papel relevante, tanto na sociedade como no culto. Contrariando os costumes da época, entre os gnósticos a mulher tinha um papel de absoluta igualdade com o homem.
É paradigmática a história de Maria Madalena. Embaraçada com o facto de Madalena ter sido talvez uma das discípulas dilectas de Jesus, provavelmente a sua companheira, a Igreja não viu outra solução senão transformá-la em prostituta e depois, elevá-la à santidade como prostituta arrependida. Fazendo uma leitura muito equívoca de um trecho dos Evangelhos onde uma determinada Maria lava os pés de Jesus e os enxuga com os cabelos, e onde nada se diz que se trata de Maria Madalena, a Igreja logo a identificou e estigmatizou, transformando também esta história num arquétipo muito poderoso, do qual é muito difícil as pessoas libertarem-se. A verdade porém é que, em nenhuma parte dos Evangelhos canónicos ou dos outros, se diz que Maria Madalena era prostituta. O arquétipo é tão poderoso que até há quem a confunda com a mulher do episódio da mulher adúltera, em que Jesus diz que quem não tiver pecado que lance a primeira pedra.
Os dogmas têm impedido a Igreja de evoluir para formas mais saudáveis e actuais de estar no mundo. Mau grado os esforços dos últimos Papas, a Igreja tem vindo cada vez mais a perder membros. O problema é que as pessoas não abandonam a Igreja por terem conseguido erguer-se acima dos dogmas e da doutrina desactualizada. Abandonam-na por se sentirem inseguras, por sentirem a falta de algo que seja eterno e lhes dê uma certeza de fé. Saem da Igreja Católica e vão ingressar nos rebanhos fundamentalistas das religiões evangelizantes.
O beijo de Judas não passa de um paradigma criado para, por um lado culpar os judeus da morte de Jesus, por outro lado tentar justificar a sua presença terrena e física. Nisto o próprio Evangelho de Judas entra em contradição pois, se diz que Cristo se encontra no interior de cada um, apresenta depois a história do beijo como se de uma ordem de Jesus se tratasse. É apenas uma contradição aparente se considerarmos que a cena do beijo e da identificação de Jesus é simbólica.
Um dos especialistas que traduziram o Evangelho de Judas, Marvin Meyer, catedrático de estudos cristãos na Universidade de Chapman, da Califórnia, define muito bem como é que uma Igreja ou uma religião se estabelece com todo o poder temporal que nos habituámos a ver na Igreja Católica. Diz ele que, “seja qual for a figura central de uma fé – se Jesus, Muhammad ou Buda – ela começa com um movimento profético e carismático. Mas, para perdurar tem de se estruturar. É preciso decidir de onde virá o dinheiro, quem será o líder, como se nomeará o líder seguinte. Aí se iniciam os jogos de poder. Numa religião, isso significa decidir também qual é a verdade, e quem a controla. A Igreja cristã é a mais bem sucedida organização social de toda a história da humanidade.”
Os gnósticos eram grupos dispersos que funcionavam independentes uns dos outros, cada grupo com o seu líder escolhido entre os seus membros, homem ou mulher. Como não tinham nenhum sentido de organização nem apetência pelo poder temporal, estavam condenados, naturalmente, ao desaparecimento. Apesar disso foram perseguidos pelo fundamentalismo dos primeiros padres da Igreja. Desapareceram mas os seus ensinamentos não se perderam, pois ainda há gente que sabe que o verdadeiro Cristo está no interior de cada ser humano, e não num altar de uma qualquer Igreja.
Pergunta-se: o que sucederia se Jesus aparecesse hoje na porta de uma Igreja? Dado o seu carácter revolucionário, patente mesmo nos Evangelhos canónicos, muito provavelmente seria expulso e não seria aceite em parte nenhuma. A sua doutrina não encaixaria em nenhuma das religiões cristãs da actualidade.
Se pensarmos que Deus não é algo exterior a nós mesmos, que todos temos essa centelha divina dentro de nós, que podemos se quisermos, com toda a nossa força de vontade, despertar ou ressuscitar o Cristo que está em nós, a existência ou não do homem chamado Jesus, se a sua história é ou não verdadeira, não tem a menor importância. Tem apenas importância para as religiões, que não sobreviriam sem uma figura central que justifique a sua existência e a sua doutrina.
Ao olharmos para trás, para esses dois mil anos que já transcorreram desde o início da formidável aventura que a religião cristã protagonizou, vemos com desânimo que o homem não se tornou melhor, continua a manifestar o mesmo egoísmo, a mesma violência, a fome continua a matar milhões de pessoas e a maior parte da humanidade continua sem o mínimo para sobreviver com dignidade. Portanto, a resposta ao anseio do homem por se elevar a um estado superior, não pode estar na religião. Está sim, como diziam os gnósticos, no coração de cada um.

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