As religiões do “Livro” sempre se caracterizaram por profundas cisões no seu seio, exceptuando talvez o Judaísmo que, apesar de várias ramificações e tendências, estas não têm constituído desavenças graves entre os seus praticantes.
O Islamismo dividiu-se em duas facções principais, os xiitas e os sunitas, em razão dos sucessores de Muhammad (Maomé), pelo menos os primeiros três califas, terem sido usurpadores na opinião dos xiitas. Isto tornou-os inimigos permanentes.
O Cristianismo é uma religião dividida desde as suas mais remotas origens. Como já vimos na minha primeira crónica acerca deste assunto, os primeiros grupos cristãos não se entendiam em questões importantes como a verdadeira natureza de Jesus. Salientava-se uma corrente importante chamada arianismo, nome derivado do seu promotor, Arius, que negava a consubstancialidade entre Jesus e Deus e, portanto, a Trindade. Para Arius, Jesus era filho de Deus, subordinado a Ele, e não o próprio Deus, o qual seria um grande e eterno mistério, oculto em si mesmo, e que nenhuma criatura conseguiria revelá-lo, visto que Deus não podia se revelar a si mesmo.
Esta doutrina não tinha nada de extraordinário, pois estava de acordo com o pensamento judaico acerca da natureza de Deus como é explicado na Cabala e surgia directamente dos grupos gnósticos que tinham adoptado o Cristianismo. No entanto, apesar desta doutrina ser aceite pela maioria dos grupos cristãos, outros havia que começavam a assumir uma posição dogmática e consideravam o Pai, o Filho e o Espírito Santo como três manifestações da mesma natureza. Foi esta posição que foi assumida oficialmente no Concílio de Niceia liderado por Constantino e o arianismo foi considerado uma heresia, sendo Arius e outros apoiantes da sua posição sido expulsos do Concílio. Apesar disso, o arianismo não foi erradicado, antes pelo contrário, pois continua a ser um elemento de discórdia dentro do Cristianismo.
A palavra “cisma” quer dizer divisão e é aplicada, quase exclusivamente, no Cristianismo. Historicamente, apesar do Cristianismo viver em permanente cisma, por isso o título desta crónica, uma religião cismada, são considerados dois grandes cismas: o Cisma do Oriente e o Cisma do Ocidente.
O Cisma do Oriente refere-se à cisão entre a Igreja Católica Romana e Igreja Católica Ortodoxa. Para esta cisão contribuíram motivos de natureza política e de natureza religiosa ou teológica. Embora os motivos políticos tivessem criado sérios problemas para a unidade da Igreja, foram certamente motivos teológicos os responsáveis pelo definitivo desentendimento entre as duas Igrejas.
Por motivos políticos temos a grande reserva que os ortodoxos tinham em relação à dependência de Roma, reserva agravada com a divisão do Império Romano em Império do Ocidente e do Oriente, este com capital em Constantinopla . Enquanto os ortodoxos se fundavam numa organização clássica e conservadora, em que cada um dos patriarcas era dono e senhor do seu burgo, não guardando obediência a ninguém, senão ao sínodo dos patriarcas, os ocidentais obrigavam à dependência de Roma de todas as igrejas cristãs. O fosso foi agravado pelo saque de Constantinopla na 4ª Cruzada em 1204, em que os ocidentais saquearam a cidade e massacraram a população a qual, na sua grande maioria, era cristã ortodoxa.
As razões teológicas que dividem a Igreja Oriental da Ocidental prendem-se, essencialmente, com aquilo que foi designado como “filioque”, que quer dizer “do Filho ou procedente do Filho”. No Concílio de Niceia, em 325, foi adoptado um Credo, que é uma declaração de fé ou profissão de fé cristã, tendo sido aceite por ambas as Igrejas. Este Credo foi revisto mais tarde no Concílio de Constantinopla, em 381, e continuou a ser aceite. Mais tarde foi acrescentado o “filioque” e tudo se complicou. O que é, afinal, o “filioque”?
O “filioque” é um acrescento feito mais tarde pela Igreja latina em que coloca o Espírito Santo proveniente do Pai e do Filho e consubstancial ao Pai e ao Filho, declaração inaceitável pela Igreja Ortodoxa, pois para esta o Espírito Santo provém apenas do Pai ou por intermédio do Filho. Exemplo do “filioque” acrescentado ao Credo:
“Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a vida,
e procede do Pai e do Filho;
e com o Pai e o Filho
é adorado e glorificado:
Ele que falou pelos Profetas.”
Este acrescento que provocou a ira dos ortodoxos foi criado por monges latinos em Jerusalém. Para o Papa Leão III este acréscimo ao Credo era ilícito, mas os monges insistiram, tomando uma posição de força por se acharem sob a protecção do imperador Carlos Magno. Este, para resolver a questão, convocou um sínodo em Aquisgrano, onde a doutrina do “filioque” foi aprovada. Apesar disto a Santa Sé manteve-se na sua negativa em aprovar tal acréscimo, mas os cristãos ocidentais continuaram a exercer pressão para que fosse aprovado pela mais alta instância. Em 1013, o imperador do Sacro Império Romano, Henrique II, insistiu junto do Papa Bento VIII para que inserisse o “filioque” no Credo. O Papa acabou por concordar em 1014. Os ortodoxos, pela voz de Fócio, Patriarca de Alexandria, reagiram acusando os latinos de "transgressores da Palavra de Deus, corruptores da doutrina de Jesus Cristo, dos Apóstolos e dos padres; seriam novos Judas a dilacerar os membros de Cristo".
Estava aberta a chaga que iria separar definitivamente a Igreja Oriental da Ocidental. As acusações continuaram com o patriarca Cerulário de Constantinopla a fazer uma tremenda campanha contra os latinos por causa da natureza do Espírito Santo contemplado no “filioque”. A separação definitiva deu-se em 1054, quando o papa enviou a Constantinopla um cardeal para tentar conciliar as posições. Infelizmente parece que a missão desse cardeal não foi bem sucedida, pois acabou por excomungar o patriarca Cerulário e este, entendendo que a excomunhão incluía toda a Igreja bizantina, excomungou também o Papa Leão IX. Este foi o que ficou designado como o Grande Cisma do Oriente, que continua em vigor, pois as duas Igrejas nunca conseguiram um acordo até hoje.
Quando ao Cisma do Ocidente, não houve razões de natureza teológica na sua origem, mas razões políticas. Deu-se entre 1378 e 1417, com Papas e Antipapas, uns em Roma e outros em Avinhão, na França, chegando a haver também Antipapas em Pisa, na Itália. Cada um deles recebia apoios dos reinos europeus, que se dividiram também entre apoiar o Papa de Avinhão ou o Papa de Roma. O assunto ficou resolvido em 1417, sediando definitivamente a sede do papado em Roma.
Isto tudo não é nenhuma novidade, consta dos manuais de História e a própria Internet está cheia de informações a respeito. Resta saber a razão dos Cismas, principalmente na Igreja Ocidental pois, para além daqueles que foram considerados historicamente, na verdade tem havido, ao longo do tempo, uma constante instabilidade nessa instituição chamada Igreja Católica Romana. Desde a Reforma e a Contra-Reforma, à separação da Igreja de Inglaterra, aos problemas com a Igreja Americana, até à recente Teologia da Libertação na América Latina, cujos promotores foram duramente castigados pelo Vaticano, tudo isto tem levado a um sucessivo esvaziamento do seu poder e implantação na sociedade, embora as estatísticas continuem a dizer que os católicos são a maioria absoluta nos países do Ocidente. O protestantismo tem vindo a ganhar muito terreno nos últimos tempos pela via das Igrejas Evangélicas. Não incluímos como Cismas os vários movimentos considerados heréticos, como no caso dos Cátaros, assunto que será objecto de outra crónica.
Ao contrário das Igrejas Ortodoxas, que se mantiveram independentes entre si, divididas em patriarcados, cada um com suas características diferentes em função da região em que está implantado, a Igreja Católica Romana transformou-se num império, herdeiro administrativo do extinto Império Romano do Ocidente, com o Sumo Pontífice, cargo anteriormente atribuído aos imperadores romanos, sediado em Roma. Para os ortodoxos, Cristo é o chefe da Igreja, para os latinos, é o Papa, o Sumo Pontífice que dirige de forma autocrática todo a imensidão do mundo católico romano. Hoje restringido ao Vaticano, Estado independente que não chega a ter meio quilómetro quadrado de área, é o chefe incontestado e incontestável da espiritualidade católica, fundamentando o seu poder através dos dogmas que foram sendo incluídos nos cânones da Igreja através dos séculos.
Os dogmas são verdades incontestáveis, não admitem discussão. Existem hoje 46 dogmas, perfeitamente listados para quem quiser consultar a Internet. Por estranho que possa parecer, e celibato dos padres não é um dogma, depende apenas da vontade do Papa.
No seio de uma religião ditadora, que ditou ordens à Europa e ao mundo pós descobertas, é natural que tenham vindo a surgir dissidências e, quando o ramo não verga, quebra. Tirando o caso do Budismo, que não é uma religião, mas uma filosofia, não conheço nenhuma outra religião que dependa assim de um poder absoluto e centralizado. Talvez seja este o motivo principal das dissidências, dos cismas, das divisões de uma Igreja que, apesar da popularidade dos últimos Papas, difícil de compreender principalmente para o mundo feminino, continua a viver numa crise permanente e escondida. Hoje já não pode enviar exércitos para impor a sua doutrina aos povos submetidos
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