sábado, 8 de março de 2008

Os Segredos de Fátima III

Fátima – de Altar Português a Altar do Mundo

Uma das questões que tem incomodado a Igreja é a posição assumida pelo papa Pio XII durante a 2ª Grande Guerra, ao não condenar explicitamente Hitler e o nazismo. Tenho ouvido ao longo do tempo várias razões tentando explicar a sua estranha neutralidade no conflito. Há quem diga que foi para não prejudicar os católicos alemães e que afinal, quando os nazis invadiram Roma, ele mandou receber uns milhares de refugiados no Vaticano, a maioria deles judeus. Milhares de judeus também conseguiram refúgio em muitos conventos de Itália. Uma outra explicação me foi dada por um bispo português. Segundo este bispo a posição de Pio XII justificava-se porque ele sabia que o perigo real não estava no nazismo, mas sim no comunismo liderado pela Rússia de Estaline. Respondi-lhe que a questão não era política, mas humanitária, e não compreendia a posição do Vaticano perante o genocídio que estava a ser cometido contra o povo judeu e outras raças e etnias, como os ciganos. É óbvio que Pio XII poderia ter tomado uma posição coerente com os princípios evangélicos, condenando Hitler e o nazismo, assim como Estaline e o comunismo. Tinha também um bom pretexto, pois Hitler já se tinha manifestado contra a hierarquia e organização da Igreja em vários discursos, dizendo no entanto que era um crente em Deus – ninguém sabe de que Deus é que ele falava. Mas não o fez, manteve-se na posição de Pilatos, lavando as mãos em relação ao que estava a acontecer.
Mas o assunto começa a fazer algum sentido se o analisarmos a partir de uma perspectiva anticomunista, posição desde sempre assumida pela Igreja ou, pela grande maioria dos seus membros. Lembremo-nos da “Teologia da Libertação” defendida por alguns padres da América do Sul, que foi condenada pelo Vaticano e os padres, se não foram excomungados, foram proibidos de continuar a exercer a sua função de sacerdotes.
É neste contexto anticomunista que Fátima assume um papel predominante. Deixa de ser um assunto relativamente incómodo para a Igreja, que não sabe exactamente como encarar os factos ocorridos com os videntes, e passa a altar português para o mundo, representando as forças ideológicas que se opõem à expansão comunista. Estando localizada em Portugal, país que a partir de 1926 passou a ser governado pelas forças conservadoras antidemocráticas e anticomunistas, era a situação ideal para a transformar na “luz do mundo” no combate contra as trevas do comunismo, entendido por muitos sectores conservadores como a encarnação da besta do Apocalipse. De notar que o reconhecimento oficial de Fátima pela Igreja só aconteceu em 1930, reconhecimento não alheio certamente à implementação do regime saído da revolução de 28 de Maio de 1926.
Tanto assim é que, ainda nos anos vinte as declarações de Lúcia continuam mais ou menos coerentes com as primeiras impressões transmitidas aos sacerdotes encarregados dos primeiros inquéritos. Como mostrei na crónica anterior, em 1935, dezoito anos depois das aparições, Lúcia declara a Antero de Figueiredo que nunca afirmara que a aparição era Nossa Senhora, mas sim uma mulherzinha muito bonita.
As coisas mudam completamente a partir daquele ano. Entre 1935 e 1941 Lúcia é instada a escrever as suas memórias. Nestas parece desmentir muitas das anteriores declarações e assumir um papel anticomunista. É nesta altura que começa a tomar forma a história do segredo, dividido em três partes: a visão do inferno com as almas dos pecadores (comunistas) em eterna agonia; a oração e penitência exigida aos fieis para a conversão da Rússia; a parte que se manterá secreta até aos anos oitenta.
A decisão de escrever as memórias não parte de Lúcia, mas sim em obediência a um pedido, ou ordem expressa, do bispo de Leiria. Lúcia mal sabe escrever, mas as suas memórias aparecem bem escritas, num português correcto, prova de que foram corrigidas, emendadas e alteradas para se enquadrarem nas intenções programáticas e ideológicas da Igreja. Estamos a falar de uma Igreja extremamente conservadora no seio de um Estado conservador, ideologicamente coincidente, ou seja, duas forças semelhantes com objectivos comuns. À política obscurantista da Igreja, o Estado Novo complementa com a ideia de que os portugueses apenas precisam de saber ler, escrever e contar, não precisam de cursos superiores.
Entretanto, na sua miserável vida de clausura a que foi submetida, Lúcia começa a ter uma vaga noção do enorme poder que representa. No mundo católico é a testemunha viva da relação com Deus através de Nossa Senhora. Fazendo a vontade dos “doutores” da Igreja, transforma-se num ser cuja importância vai crescendo à medida em que vai “criando” as suas memórias. Já não é importante que sejam verdadeiras, é preciso que se conformem com os desígnios da Igreja.
O “casamento” entre a Igreja e o Estado Novo começa a mudar de figura com a eclosão da guerra colonial e a sua expansão a três frentes. Muitos sectores influentes da Igreja reconhecem o direito dos povos à autodeterminação e repudiam a guerra que se desenrola, pois não vêem no conflito uma solução para o problema das colónias. O Vaticano fica assim entre a espada e a parede. Prova desse mal-estar é a visita que Paulo VI faz à Índia em 1964, que deixa Salazar furioso, considerando que essa visita era uma afronta a Portugal. Esse mal-estar continuou na visita a Fátima de Paulo VI, em 1967.
Gradualmente o Vaticano vai tomando conta de Fátima. A autoridade sobre o Santuário deixou de ser portuguesa, o facto das aparições terem acontecido ali, em solo português, transforma-se em mero acidente.
Lúcia sente-se cada vez mais importante. O documento do segredo está em poder do Vaticano, de cuja dependência passou a estar Fátima. Recusa um pedido do Reitor de Fátima para responder a um questionário, dizendo que só o fará se o Reitor obtiver autorização de Roma. O questionário nunca foi respondido, não se sabe se por falta de autorização, ou se essa autorização chegou a ser pedida. Lúcia já não é portuguesa, está acima de qualquer português, pois nela só Roma é que pode mandar.
Controlada pelo Vaticano, Fátima deixou de ser um altar português e passou a altar do mundo. No entanto, não ganhou nada com a troca em termos teológicos, pois continua a integrar uma mensagem de sacrifício, de penitência, de exaltação de culpa, de opressão, de fanatismo, oferecendo como caminho de salvação um comportamento retrógrado, involutivo, digno das trevas da Idade Média e não consentâneo com os tempos actuais. Em Fátima não há amor, há apenas castigo.

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