segunda-feira, 31 de maio de 2010

Conversas com Samuel Dalatando

I – A Fraternidade Rosa-Cruz – 4ª Parte

Enquanto aguardava novo contacto de Samuel para continuarmos a nossa conversa iniciada em Alfama, onde tínhamos falado pouco acerca de Saint-Martin e Willermoz, nomes que eu considerava dos mais importantes para tentar compreender o destino das ideias rosacruzes surgidas no início do século dezassete, continuei as minhas pesquisas sobre um assunto que, para mim, era fascinante. No entanto, tinha a sensação de que esse tempo mágico dos manifestos estava perdido para sempre.
Encontrámo-nos novamente, naquele final de Junho que se mostrava mais quente do que o normal, em casa de um amigo comum, Daniel Escobar (ver nota de rodapé), um padre erudito com vários mestrados e doutoramentos, responsável por algumas obras caritativas da Igreja.
Daniel Escobar vivia literalmente no meio de livros, a sua biblioteca e local habitual de trabalho era um autêntico caos, com livros amontoados por todo o lado e a sua mesa era um mar de papel, entre livros, revistas, cadernos e folhas soltas. No meio de toda aquela confusão sabia, exactamente, o local de cada publicação que precisasse de consultar. A empregada doméstica que tratava da casa tinha ordens para não entrar ali.
A casa ficava situada no bairro da Lapa, uma daquelas casas em que a frente para a rua não deixava adivinhar o seu tamanho, que para além de vários quartos e salas, se estendia por um jardim bem cuidado, e um subsolo onde Daniel construíra uma capela dedicada à Senhora da Conceição, onde por vezes celebrava missas. Baptizados e casamentos celebrava-os na Igreja dos Navegantes, também na Lapa.
Daniel Escobar recebeu-nos calorosamente. Vestia trajos civis, colarinho aberto, nada fazendo suspeitar da sua condição de sacerdote. Conduziu-nos para o aposento onde gostava de receber os amigos, a sua caótica biblioteca.
Conhecera Daniel Escobar na época, uns anos antes, em que me encontrava envolvido na Igreja Católica. Tínhamos feito juntos uma viagem e estadia em Fátima, num 13 de Maio e, como eu não reservara hotel ou pensão para passar a noite de 12 para 13, fiquei acomodado nos aposentos de um bispo que cancelara a sua presença à última hora. As refeições, usando as senhas destinadas ao mesmo bispo, tomei-as no Centro Paulo VI. Tudo isto arranjado pelo padre Daniel Escobar.
Era o fim da tarde desse dia de Junho e o Sol, ainda alto àquela hora, entrava por uma janela virada para poente, de onde também se podia ver um pouco do Tejo. Daniel serviu-nos um malte da melhor qualidade, quase fazendo esquecer o gosto do whisky, tal a pureza em que fora destilado.
- Como está N. York? - Perguntou Daniel dirigindo-se a Samuel.
- A confusão do costume. – Respondeu Samuel.
- Confusão? Sempre achei que se tratava de uma cidade bem ordenada, apesar do seu gigantismo. – Disse Daniel.
- É uma cidade bem ordenada, sem dúvida. Mas ao mesmo tempo parece o mundo em miniatura. Ali encontra-se de tudo, seja o que for que consiga imaginar.
Enquanto os ouvia os meus olhos pousaram-se sobre um livro não volumoso, mas de grandes dimensões, intitulado “Símbolos da Rosa+Cruz”.
- Livro interessante. – Disse eu.
- Como o Manel sabe, interesso-me por muitas coisas, sou um estudioso compulsivo de tudo o que faz mover a espécie humana. Sou um homem da Igreja, não tenho dúvidas, mas ao mesmo tempo sou um buscador. Tento analisar as coisas sob o ponto de vista cristão, pois queiramos ou não, pelo menos nos últimos dois milénios, tudo se tem movido dentro do Cristianismo. Falo do mundo ocidental, evidentemente, mas mesmo no Oriente o Cristianismo tem tido a sua influência.
- Sim, de acordo. – Disse Samuel. – A ideia ou as ideias rosacruzes surgiram dentro do Cristianismo, beneficiando da liberdade provisória proporcionada pela Reforma.
- Provisória? – Estranhou Daniel.
- Sim, porque logo os potentados das regiões abrangidas se apossaram do movimento religioso e começaram a estabelecer as suas regras, limitando a liberdade de pensamento e expressão.
- Ainda bem que não foi só a Igreja a responsável. – Disse Daniel, rindo.
- Nesse aspecto a Igreja foi sempre imbatível. – Respondeu Samuel, também rindo. – Mas acha que a Maçonaria também surgiu de dentro do Cristianismo?
- Sem dúvida. – Respondeu Daniel. – Foi beber na mesma fonte.
- E a Maçonaria ateia?
- Refere-se aos chamados “Grande Oriente”?
- Sim. Como o GOL português e o GOF francês.
Daniel parou uns instantes, reflectindo, depois disse:
- Do meu ponto de vista não existe Maçonaria ateia. Essa corrente, como sabem, nasceu em França, um pouco antes da Revolução Francesa, recebendo desta muita influência. Como é que alguém pode considerar-se ateu e referir-se ao Grande Arquitecto como responsável por toda a Criação? Chamar-lhe Grande Arquitecto ou Deus não é a mesma coisa?
- Julgo que a ideia do ateísmo vem do facto de não seguirem uma religião. – Atalhei eu. – Mas isso não passa de um sofisma, pois não seguir uma religião não faz de ninguém ateu.
- Mas não é difícil conceber a ideia de Deus fora de uma religião? – Perguntou Daniel.
- Sem dúvida. – Respondi. – É um caminho difícil e por vezes pode tornar-se perigoso, pois pode conduzir-nos a extremos e desequilíbrios não muito recomendáveis para a nossa saúde mental.
- Convido-vos para jantar comigo – Interrompeu Daniel. – Não aceito uma recusa. Mandei preparar um borrego à moda da minha terra e o vinho é especial da minha quinta.
Samuel esboçou uma tentativa de recusa, dizendo que já tinha um compromisso, mas não adiantou, ficámos os dois para jantar.
- Bem, onde é que nós estávamos? – Perguntou Daniel.
- Na Maçonaria ateia. – Respondi.
- Ah, isso mesmo. Nada acontece fora do Cristianismo.
- Mesmo essa forma de Maçonaria e algumas expressões rosacruzes? – Perguntei.
- Onde nasceu a Maçonaria? Não foi no século dezassete, ligada ao movimento jacobita inglês?
- Sim, – concordei, – e a Rosa+Cruz?
- No mesmo século, ligada a um grupo de teólogos alemães, nomeadamente Valentin Andreae e Tobias Hess.
- Tobias Hess? – Estranhou Samuel. – É a primeira vez que ouço esse nome.
- Tobias Hess era um grande amigo de Andreae. Provavelmente a “Fama” e outros manifestos, saíram da sua cabeça ou da cabeça dos dois.
- Mas os escritos são do Andreae. – Disse eu.
- Sim, Tobias tinha uma vida muito complicada, uma casa com mais de uma dúzia de filhos, um caos doméstico que ele tinha que sustentar e que não o deixava concentrar-se verdadeiramente nas suas ideias de modo a escrevê-las. Quem o fez foi Andreae, não tenho dúvidas de que os manifestos foram criados pelos dois.
- Portanto, – continuou Daniel, – essa ideia de uma fraternidade invisível de seres superiores chamada Rosa+Cruz nasceu dentro do Cristianismo, no movimento da Reforma a que os dois pertenciam. Havia um outro, chamado Besold, que talvez tenha dado algum contributo para os manifestos, não sei. Mas Besold arrependeu-se da Reforma ao ver o caminho que as coisas levavam, desgostoso que o cristianismo reformador tivesse caído em mãos profanas de duques, arquiduques, etc., e voltou para o catolicismo.
- Penso que os manifestos tiveram a virtude de sacudir as consciências da época, mostrando que era possível construir uma sociedade melhor. – Disse Samuel. – Mas o que é que o Daniel pensa dos manifestos e da história de Christian Rosenkreutz?
- Bem, a exposição da “Fama” nas paredes de Paris, de forma anónima, foi um puro acto de terrorismo.
- Terrorismo? – Estranhei.
- Sim, terrorismo. Terrorismo ideológico. Deixou toda a gente insegura com medo dessa fraternidade invisível.
- Quer dizer os católicos. – Disse eu.
- Não só os católicos, também os protestantes, pois o texto não privilegiava nenhuns.
- Compreendo. – Disse eu. – Mas a “Fama” colocava em perigo a Igreja. Afinal tratava-se de um texto profético de uma nova sociedade cristã, ou seja, atingia os próprios alicerces da Igreja.
- Meu caro Manel… Vamos esquecer a minha condição de sacerdote. Com vós os dois sinto-me à vontade para dizer o que vou dizer. Todos sabemos que Lutero iniciou um movimento de purga de vícios da Igreja. Mas essa ideia perdeu-se depois nos meandros do poder secular, com os vários “delfins”, duques e afins, a tentarem dominar o movimento na sua região e a ditarem ordens. Isto veio beneficiar em parte a Contra-Reforma. Mas reconheço os vícios apontados por Lutero e de que a Igreja precisava realmente de uma reforma. Acham estranho eu dizer isto?
- Não. – Respondeu Samuel. – Pelo que conheço de si, acho que é uma pessoa que não teme questões como essa.
- Que me têm causado alguns dissabores. Por isso não chegarei nunca a bispo ou cardeal. Para isso teria que abdicar da minha consciência e aceitar coisas que me parecem inaceitáveis.
- O Daniel disse-me um dia que a consciência de cada um é inviolável. – Disse eu.
- Mantenho essa afirmação.
- E porque é que então continua sacerdote? – Perguntou Samuel.
- Por duas razões. Em primeiro lugar, porque o sacerdócio é para toda a vida, mesmo que renunciasse aos meus votos e optasse pela vida civil, como muitos têm feito, nunca deixaria de ser sacerdote. Em segundo lugar, porque acho que as mudanças, se possíveis, devem ser feitas no interior da Igreja, e não fora dela.
- Mas o que é facto, – contrapus, – é que não tem havido mudanças. A Igreja continua igual ao que sempre foi. Os dogmas e a censura continuam os mesmos ao fim de uma porção de séculos.
- Reconheço que tem sido um caminho muito difícil. – Respondeu Daniel. – Mas, apesar de tudo, a Igreja tem hoje uma postura diferente perante o mundo. Sei que vai dizer que a Inquisição não exerce hoje o seu poder porque esse poder lhe foi retirado pela sociedade civil. Mas vamos parar de falar da Igreja, afinal, como alguém já disse, ela é o grande repositório espiritual da humanidade.
- Será? – Perguntou Samuel. – Não acha que existe uma tradição espiritual exterior à Igreja?
- Não, não acho. – Respondeu Daniel.
- Bem, – continuou Samuel, – existe o Budismo, o Hinduísmo e toda uma tradição oriental que nada tem a ver com a Igreja.
- Aparentemente é assim. – Respondeu Daniel. – Mas iríamos muito longe para sabermos a origem de toda essa tradição. O que é, afinal, a tradição espiritual da humanidade?
- A tradição espiritual da humanidade é algo primordial, que vem da origem dos tempos. – Disse eu. Por isso a Maçonaria, a Rosa+Cruz, mesmo a Teosofia, reportam a sua origem a tempos muito antigos, em certos casos assumem uma origem atlante.
- Exactamente. – Disse Samuel. – Parece que tudo nos veio via Egipto, o Egipto Antigo. Não sabemos até que ponto a tradição egípcia terá influenciado a tradição oriental, mas sabemos que foi do Egipto que surgiram as três grandes religiões manifestadas. Não é assim?
- Não vai falar de Akhenaton, como o grande mentor dessa tradição. – Disse Daniel.
- Não. – Respondeu Samuel. – Embora em alguns círculos se considere Akhenaton como o faraó que primeiro quis instituir a noção de um Deus único, não concordo com isso porque essa noção sempre existiu no Antigo Egipto. Há um livro muito interessante, cujo autor não me recordo agora, chamado “O Egípcio”, que retrata Akhenaton de forma muito pouco favorável. Segundo esse livro, Akhenaton era um ser fraco, louco, esquizofrénico, que conduziu o Egipto a uma verdadeira guerra civil com milhares de mortos, que enfraqueceu as fronteiras tornando-as vulneráveis aos exércitos inimigos, que levou o Egipto praticamente à bancarrota ao mandar construir a sua cidade de Akhetaton, próximo da actual Amarna, tudo isto para impor o culto de Aton em substituição do de Amon.
- Por isso, disse Daniel, – todas as referências ao seu reinado foram apagadas e não se sabe onde a sua múmia foi depositada, ou mesmo se chegou a ser mumificado, tal o ódio que despertou, não só na classe sacerdotal, mas também na maior parte da população.
- Então concorda com esse retrato de Akhenaton? – Perguntei.
- Concordo. Embora essa história possa não passar de um mito, assim como a outra. Por um lado, Akhenaton foi um déspota paranóico que tentou impor o culto de Aton ao povo egípcio. Por outro lado foi um místico, um Cristo antecipado e sacrificado mas… ninguém governa um país poderoso como o Antigo Egipto através do misticismo. Pura loucura.
- Voltado a uma questão anterior, – disse eu, – em que o Daniel disse que tudo aconteceu dentro do Cristianismo, onde é que coloca essa tradição primordial?
- No Cristianismo. – Respondeu Daniel.
- Bem, – disse Samuel, – julgo entender o que o padre Daniel quer dizer. Sabemos que o Antigo Egipto terá sido o herdeiro e depositário dessa tradição primordial, uma chama viva mantida ao longo de séculos pelas Escolas de Mistérios, como os Mistérios e Osíris e de Ísis. Isto terá dado origem ao Gnosticismo, ou Escolas Gnósticas, com uma filosofia muito semelhante à Maçonaria tradicional. O Gnosticismo, por sua vez, deu origem ao Cristianismo na sua filosofia original, que pouco tem a ver com a actual, pois esta é literal, na assumpção de um Cristo vivente, enquanto a herança gnóstica fala de um Cristo interior. Deste modo o Cristianismo pode ser considerado o herdeiro de toda a tradição primordial. O Cristo literal foi mantido pela religião, mais interessada no poder secular do que no espiritual. O Cristo interior da tradição gnóstica e egípcia foi mantido e revivido, sempre que foi possível, pela ideia Rosa+Cruz, pela Maçonaria e pela Teosofia. Concordam?
Ficámos em silêncio durante uns momentos, apreendendo o significado das palavras de Samuel. De facto, os primeiros grupos cristãos eram gnósticos, o seu Cristo era o Cristo interior, e não Aquele, supostamente crucificado. Mas nenhuma religião se poderia manter com base apenas nesse Cristo interior.
- Muito bem. – Disse por fim Daniel. – Acho que chegou a hora de irmos jantar.
Olhei para Samuel, cuja expressão reflectia a compreensão da evasiva de Daniel, que não poderia concordar, dada a sua condição de sacerdote católico, mas que no fundo do seu íntimo talvez estivesse de acordo.
Fomos Jantar. O borrego assado estava excelente e o vinho, ainda que caseiro, era óptimo. A conversa desenvolveu-se por outros temas mais laicos.
Esta dói a última vez que conversei e me encontrei com o padre Daniel. Os nossos caminhos seguiram rumos diferentes. Só agora, no dia 12 de Maio deste ano, me lembrei dele e da conversa que tivemos, juntamente com Samuel. Neste mesmo dia 12 de Maio, Daniel faleceu. Confesso que a coincidência me deixou perturbado. Terei sido avisado, de algum modo, da sua partida?

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