I – A Fraternidade Rosa-Cruz – 2ª Parte
Quando o primeiro manifesto, o “Fama Fraternitatis”, foi exposto nas paredes de Paris, causando o maior alvoroço e temor entre todos os que sabiam ler e entre os que viam o seu mundo ficar à mercê dos tais invisíveis, que ninguém sabia quem eram, mas que parecia terem grande poder, o seu conteúdo já era conhecido em certos círculos alemães, pois alguns manuscritos tinham chegado à posse e conhecimento de pessoas ligadas ao ocultismo e alquimia, de que Paracelso continuava a ser o seu grande mentor, graças à liberdade concedida nas terras sob o domínio protestante.
O efeito dos manifestos foi devastador para os católicos. Quem eram os invisíveis? Estariam eles associados às ideias demoníacas dos judeus e dos árabes? Seriam eles discípulos de Paracelso? Como encontrá-los, persegui-los, se eles eram invisíveis?
Mesmo assim, não podendo ser identificada e provada a sua filiação em algum grupo de rosacruzes, pessoas foram presas e torturadas. Na Holanda as autoridades católicas montaram um tribunal para julgar os textos rosacruzes. Esse tribunal concluiu que a existência dos Irmãos da Rosa-Cruz não passava de ficção. Mas se era ficção, porque é que gerara tanto medo?
O próximo encontro com Samuel não foi em Paris, como eu esperava depois da nossa conversa em Frankfurt. Telefonou-me perguntando-me se poderia estar em Edimburgo, na Escócia, por volta do dia 10 de Junho, pois gostaria de me apresentar a alguém ligado à Maçonaria e aos Cavaleiros Templários e, provavelmente, ligado a algum movimento ou organização rosacruz ou martinista. Evidentemente que lhe respondi que tinha todo o interesse em conhecer tal pessoa e que faria tudo para poder estar lá nesse dia 10 de Junho.
Mas porquê o 10 de Junho, dia de Portugal, perguntei-lhe. Porque ele fora convidado a estar presente na comemoração da “White Cockade”, que se realizava nessa altura. Disse-me também para levar um trajo de cerimónia, pois eu também era convidado.
“White Cockade”? O que era isso? Nunca tinha ouvido falar em tal coisa. Na época ainda não havia a Internet para facilitar a pesquisa. O único meio era as bibliotecas. Foi na biblioteca da Universidade Católica que encontrei a resposta: havia inúmeras “white cockade” por todo o mundo; no caso escocês era o símbolo usado pelos seguidores de Charles Edward Stuart, pretendente jacobita ao trono inglês; esse símbolo era constituído por uma rosa branca usada na frente da boina ou na lapela do casaco. O termo “jacobita” derivava de James, ou Jacob, pai de Charles Edward, e era o termo usado para designar os católicos no Reino Unido.
Enquanto viajava para Edimburgo, via Londres, naquele 9 de Junho, pensei se não estaria a deixar-me envolver em algum movimento monárquico de restauração da Casa de Stuart, situação na qual não me sentia muito confortável em virtude das reservas que tinha, e que sempre tive em relação às monarquias reinantes.
Samuel esperava-me no aeroporto de Edimburgo e, enquanto nos dirigíamos para o hotel num carro alugado com motorista, informou-me que tínhamos encontro marcado à noite com Sir F., a pessoa de que me falara ao telefone. Perguntei-lhe quem de facto era essa pessoa, como era, ao que me respondeu que logo veria por mim próprio.
O motorista foi-nos buscar ao hotel um pouco antes das 19 horas. Ainda era dia e podiam ver-se distintamente as muralhas do velho castelo dominando a cidade. Ao percorrer as antigas ruas de Edimburgo, esperava ser conduzido a uma vetusta mansão e participar de um faustoso jantar. Em vez da mansão, esperava-me um terceiro andar sem elevador de um velho edifício do centro da cidade. Em vez do jantar, apenas um chá acompanhado de bolachas e bolinhos.
Sir F. recebeu-nos à porta do seu apartamento e introduziu-nos num salão modestamente decorado, onde se podiam ver velhas gravuras penduradas nas paredes. Era um homem corpulento que devia andar pelos 70 anos de idade, barba branca crescida e uns olhos azuis brilhantes e inquisitivos. Vestia o tradicional “kilt” escocês e estava acompanhado por um jovem que apresentou como príncipe Charles, herdeiro da coroa britânica caso a actual Casa de Gales não tivesse descendência. Para sobreviver, como vim a saber mais tarde, este príncipe trabalhava numa livraria.
Depois de sentados em sofás já com bastante uso, e de servido o chá numa mesa baixa, por uma mulher também idosa que calculei ser a pessoa que tomava conta da casa e de Sir F., este, depois de um olhar caloroso em direcção a Samuel, olhou para mim e disse:
- Samuel falou-me do seu interesse pelas coisas templárias e rosacruzes. Samuel é meu grande amigo desde longa data e falou-me muito de si. Espero que nos tornemos também amigos.
- Sim, – respondi – tenho vindo a pesquisar há algum tempo acerca dos templários e dos rosacruzes, assim como dos maçons.
- Então veio ao lugar certo. - disse ele com um largo sorriso – Sei alguma coisa acerca disso tudo.
- Alguma coisa? – Perguntou Samuel.
- Sim, alguma coisa. Ninguém sabe tudo acerca desses assuntos e há muita informação confusa.
- Por informação confusa – disse eu, - o que me pode dizer acerca dos templários na Escócia? Sempre é verdade que fugiram em barcos de La Rochelle, durante a perseguição ordenada por Filipe o Belo, de França, e se refugiaram aqui, dando origem ao que nós conhecemos hoje como Maçonaria?
Sir F. olhou para mim com curiosidade, como que a avaliar se eu queria realmente ser esclarecido, ou se esperava confirmação do que dissera. Depois pegou num livro que tinha sobre uma estante e disse
- Este é um livro muito interessante sobre a história dos templários na Escócia. Foi escrito pelo meu querido amigo Andrew Sinclair, descendente da antiga família Saint Clair ou St. Clair. Como já o li, tenho o maior prazer em oferecê-lo a si, se não se importa de o receber apesar de já lido.
Recebi o livro com satisfação e pedi a Sir. F. que fizesse uma dedicatória, que ele escreveu de imediato. Olhei a capa e o título era “The Sword and the Grail” [A Espada e o Graal]. Em subtítulo, “A História do Graal, os Templários e a verdadeira descoberta da América”.
- A verdadeira descoberta da América? – Perguntei.
- Sim. Os templários que vieram para a Escócia navegaram também para ocidente e acabaram por descobrir a América, muito antes de Colombo. Aí nesse livro tem fotos de gravações em pedra na Nova Inglaterra feitas por esses descobridores.
- Interessante. – Comentei.
- Quer dizer que os templários fugidos das perseguições em França vieram acolher-se aqui na Escócia. – Acrescentei.
- Não todos. Vieram apenas alguns. Como também encontrará nesse livro, a maior parte rumou para Portugal, onde foram bem recebidos e acolhidos. Desembarcaram próximo de Nazaré e depois transportaram a carga que levavam para Tomar.
- O tesouro templário?
- É provável que fosse um tesouro, talvez dinheiro, talvez mapas. Não foram eles que depois, através da vossa Ordem de Cristo desenvolveram os descobrimentos? Onde é que Portugal foi achar o dinheiro e os mapas para esse notável empreendimento?
De facto, quando os portugueses se lançaram na campanha dos Descobrimentos estavam praticamente na bancarrota, tinham acabado de ter uma guerra com Castela e não havia dinheiro para nada.
- Os templários permaneceram na Escócia até aos dias de hoje? – Perguntei. – Pelo que sei existe ainda uma Ordem Templária Escocesa.
- Sim, existe. Mas hoje essa Ordem não é mais do que uma organização de carácter caritativo, recebemos doações que depois distribuímos pelos mais necessitados. Reunimo-nos duas ou três vezes por ano em Capítulo, na catedral de St. Mary. Uma das ocasiões é precisamente na altura da festa da “White Cokade”, que se realiza amanhã.
- A família St. Clair foi uma das famílias que acolheu os templários. – Disse Samuel. – Essa família não está ligada à capela de Rosslyn, que parece conter segredos templários e maçónicos?
- É verdade. – Concordou Sir F. – Nessa altura Rosslyn era um castelo da família St. Clair. A capela é uma reminiscência. Foram também os St. Clair que se lançaram á descoberta da América.
- Mas que mistérios estão guardados em Rosslyn? – Perguntou Samuel.
- Rosslyn, a capela, foi criada pelo mestre maçon William St. Clair. Está cheia de símbolos templários e cabalísticos, muitos dos quais ainda não foram compreendidos. Foi durante séculos, e julgo que ainda é, a grande referência dos maçons de todo o mundo. Rosslyn, em escocês antigo, quer dizer “corrente de sangue”, Ross [corrente] e Lyn [vermelho ou sangue], e tem a ver, naturalmente, com Cristo.
Ficámos em silêncio durante algum tempo.
- Quer dizer que a Maçonaria foi criada a partir dos templários? – Perguntei.
- Não. São vias diferentes. Os templários eram uma cavalaria ao serviço da Igreja. A Maçonaria nasceu dos antigos mestres pedreiros. Ninguém sabe quando nasceu a Maçonaria ou a ideia maçónica. Porque isto é que é importante – a ideia. É sobre uma ideia que se organizam associações, agremiações. Portanto, a ideia maçónica já existia há muito tempo e foi trazida desde a mais remota antiguidade até nós por esses mestres pedreiros. Não foram estes mestres pedreiros que construíram o Templo de Salomão? Não foram eles que construíram as catedrais góticas?
- Sim, – Concordei. – Evidentemente que a ideia maçónica do cristianismo é diferente da dos templários. No entanto, há um ponto comum, a ideia de uma sociedade regenerada, como a ideia rosacruz do século XVII.
- Se estou a compreender, - disse Samuel, - a questão toda se resume à ideia. Uma organização é uma mera forma de tornar a ideia acessível a outros. Quero dizer, uma forma de difundir a ideia o mais possível, como no caso da ideia rosacruz do século XVII, difundida através dos manifestos e de outras obras da altura. Dizem até que Francis Bacon foi o autor dos manifestos, e não o Valentin Andreae.
- Já li algures que Francis Bacon foi, não só o autor dos manifestos, como também quem escreveu as peças atribuídas a Shakespeare. – Disse eu.
- Não, não… - respondeu Sir F. – Muita coisa tem sido atribuída a Francis Bacon, que foi uma mente iluminada, sem dúvida. Mas não é verdade. Shakespeare foi uma pessoa muito inteligente e foi ele mesmo quem escreveu as suas peças. Pode ter tido alguma ajuda mas, o autor é ele mesmo, hoje não há dúvidas, a não ser entre alguns especuladores que pretendem desvirtuar as suas qualidades. Quanto aos manifestos, também não, embora encontremos alguns elementos comuns, por exemplo, entre a “Fama” e a “Nova Atlântida”, esta sim, da autoria dele.
- Também já vi escrito por recentes associações rosacruzes, que Francis Bacon foi Imperator da Ordem Rosacruz, ou seja, o seu máximo dirigente. – Contrapus.
Sir F. sorriu ao ouvir esta minha última frase.
- Veja bem, - disse ele, - como é que alguém poderia ser responsável por algo que não existia?
- Não existia uma Ordem ou alguma espécie de organização chamada Rosacruz?
- Claro que não. O que existia era a ideia, que foi expressa magistralmente nos manifestos por esse génio chamado Valentin Andreae. A ideia era de uma sociedade cristã renovada, ideia também expressa na “Nova Atlântida” do Francis Bacon. Houve muitos, na altura, que se consideraram rosacruzes por aderirem a essa ideia de uma nova sociedade, mas não havia nenhuma organização. Aliás, enquanto uma ideia se mantém por si mesma e se expande, ela frutifica nas mentes dos que a ela aderem e pode, de facto, mudar algo na sociedade. Quando a ideia se cristaliza numa organização, ela transforma-se em algo hierárquico, dando origem a lutas pelo poder e a vaidades de quem está no poder. Fica reduzida a uma doutrina fechada, como acontece com as igrejas. Enquanto ideia, ela circula livre e pode iluminar as mentes preparadas ou receptivas. Fiz-me entender?
- Perfeitamente, - respondi. Mas de onde surgiu essa ideia, ou essas ideias, como a da Maçonaria e da Rosa+Cruz. Porque é que Andreae teve a iniciativa de escrever os manifestos, mantendo-se contudo incógnito?
- Bem, antes de mais é necessário entendermos que ninguém inventou nada até hoje, limitamo-nos a descobrir aquilo que já existia. Evidentemente que as ideias de Valentin Andreae e de Francis Bacon não surgiram naquela altura, eles limitaram-se a compreendê-las e a transpô-las para o papel, um sob a forma de manifestos anónimos, outro em obras sobre uma nova cidade, que é o mesmo que dizer, uma nova sociedade. A ideia rosacruz inspirou uma obra tremenda e por todos conhecida. Refiro-me ao “Dom Quixote” de Cervantes. Não é por acaso que esse livro apareceu escrito na mesma altura que os manifestos. Tido como uma caricatura ridícula dos romances de cavalaria, na verdade encerra grandes ensinamentos. Sancho Pança é a realidade da sociedade da altura. Se os romances do século XIII falavam de uma terra devastada, o “Dom Quixote” faz exactamente a mesma coisa quatro séculos mais tarde, pois é conhecida a imensa corrupção que grassava numa Europa liderada pela Igreja de Roma. Simbolicamente, a dama, Dulcineia, representa a rosa, e o combate empreendido é um combate contra a corrupta sociedade, é a cruz, o arquétipo daquele que assume uma missão, mesmo que essa missão não tenha possibilidades de êxito. No entanto, apesar dos desaires sofridos, a sua mensagem ficou para toda a eternidade.
- Muito interessante essa associação da obra de Cervantes com a ideia rosacruz, - disse Samuel.
- Mas voltando à pergunta inicial, - continuou Sir F. – qual a origem das ideias. Provavelmente têm o mesmo tronco original, tanto a Rosa+Cruz, como a Maçonaria, ou mesmo os Templários. Essas ideias foram sendo mantidas ao longo do tempo, muitas vezes à revelia dos poderes vigentes, por aqueles que aprendemos a chamar de alquimistas. Quem eram de facto os alquimistas? Gente que buscava, simplesmente. Gente que pensava que as coisas podiam ser diferentes, que a sociedade podia tornar-se mais justa e fraterna. Usavam os seus conhecimentos científicos nessa busca espiritual. Os seus modestos laboratórios eram apenas um meio através do qual poderiam chegar à Pedra Filosofal.
- Paracelso foi importante na difusão dessas ideias? – Perguntou Samuel.
- Sim. Paracelso e outros. Pitágoras, por exemplo, é tido como um dos mestres antigos dessas ideias.
- Analisando os manifestos e outras obras da altura, - disse eu, - vejo que a sabedoria contida neles veio do Oriente. Na obra de Andreae, a sabedoria é a Sofia, uma dama com asas, como se fosse um anjo. Toda a história de C. R., que se presume serem as iniciais de Christian Rosenkreutz, começa realmente no Oriente, na antiga Síria, onde ele é iniciado pelos sábios da cidade de Damcar. Mas parece que este nome resultou de um erro ortográfico e que o verdadeiro nome seria Damar. Mas não importa, o que parece acontecer é que essas ideias vieram ou nasceram no Oriente. Foi lá, em Jerusalém, que os templários foram buscar aquilo que é chamado de seu segredo, e que lhes permitiu atingir um poder muito grande na Europa.
- De facto assim parece ser. – Disse Sir F. – Numa Europa amordaçada pelo poder da Igreja de Roma, os árabes, na sua diversidade de nações beneficiavam de uma certa liberdade que lhes permitia desenvolver determinados conhecimentos que talvez não tenham sido criados por eles, mas eles souberam retê-los e transmiti-los a quem merecia. Não só os árabes, mas também os judeus criaram ou receberam toda uma sistemática da tradição que reflectiram na Cabala e em outras obras. A Maçonaria reporta as suas origens ao antigo Templo de Salomão. Portanto, Andreae, muito inteligentemente, faz o seu herói peregrinar pelo Oriente e dali voltar com toda a sabedoria.
- Mas o herói de Andreae, o R. C., não é uma ficção? – Perguntou Samuel.
- Claro que é uma ficção. – Respondeu Sir F. – Esse herói nunca existiu a não ser na cabeça de Andreae e daqueles que assumiram a sua existência real. Mas serviu magistralmente os propósitos de criar uma lenda sobre a qual se construiu todo um castelo de crenças e tradições. O túmulo de Christian Rosenkreutz nunca existiu na verdade, assim como o próprio ocupante. Existiu apenas a ideia, uma ideia de génio, sem dúvida, que desencadeou uma onda de prosélitos que se auto intitularam rosacruzes, quando na verdade não havia rosacruzes.
- Qual a influência dessa ideia aqui no Reino Unido? – Perguntei.
- Já falámos de Francis Bacon. Poderia falar de outros supostamente considerados rosacruzes. O termo rosacruz passou a ser considerado pejorativo depois do envolvimento de alguns que se diziam rosacruzes na revolução e curta república de Cromwel. Restabelecida a monarquia, a palavra rosacruz foi banida, e ainda hoje há um sentimento de repúdio por essa palavra.
- Quer dizer que no Reino Unido não existe nenhuma organização ou confraria desse nome ou que procure reviver o rosacrucianismo. – Disse eu.
- Meu querido amigo, - respondeu Sir F. – reviver algo que nunca existiu? Evidentemente que existem e existiram algumas organizações que se intitularam de rosacruzes, mas não têm nada a ver com esse passado mágico dos manifestos e da “Nova Atlântida” de Bacon.
A noite já ia adiantada e preparámo-nos, eu e Samuel, para nos despedirmos e voltarmos para o hotel. Da minha parte, o diálogo com Sir F. tinha-me trazido muitos elementos novos sobre os quais teria que meditar. Havia algo implícito no seu discurso sobre o qual não vou falar, mas que deixo ao critério do leitor tirar as suas conclusões.
No dia seguinte iria estar presente nas cerimónias templárias realizadas na catedral de St. Mary, e depois na festa da “White Cokade”, onde teria a honra de entrar no enorme salão acompanhando a Primeira Dama da Escócia, seguido de uma banda de tambores e gaitas escocesas.
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