quinta-feira, 6 de maio de 2010

Conversas com Samuel Dalatando

I – A Fraternidade Rosa-Cruz – 3ª Parte

Depois da nossa estadia em Edimburgo, durante cerca de um ano pouco soube de Samuel Dalatando. Sabia que ele vivia em N. York, num apartamento da rua 52, e que era um “globetrotter”, um cidadão do mundo. Viajava constantemente e não raro via notícias a seu respeito na imprensa e na televisão. Sabia, no entanto, que mais dia, menos dia, o nosso contacto se restabeleceria e continuaríamos as nossas conversas. Entretanto fui fazendo alguma pesquisa, li alguns livros, consultei outros, cruzei informações, afim de poder obter uma imagem mais abrangente de todo o processo rosacruz.
Se o século dezassete se tinha notabilizado pela explosão das ideias rosacruzes, envolvendo alguns nomes importantes, beneficiando e um certo clima de aparente liberdade resultante da crise que grassava na Igreja provocada pela Reforma iniciada por Lutero, o século seguinte assistiu a uma certa concretização daquelas ideias, pois foi o século do aparecimento de muitas organizações maçónicas ou paramaçónicas.
Três nomes, entre muitos, marcaram indelevelmente esse século dezoito, cujas ideias e rituais foram adoptados por uma infinidade de organizações até aos dias de hoje. Esses nomes são: Martines de Pasqually, Jean-Baptiste Villermoz e Louis-Claude de Saint-Martin.
Enquanto aguardava o contacto de Samuel, fui pesquisando sobre essas três figuras marcantes do século XVIII, que influenciaram todo o movimento maçónico e deram origem ao chamado “cristianismo esotérico”, conhecido como martinismo, além de terem estabelecido toda uma ritualística ainda hoje seguida por várias escolas iniciáticas. Como gostaria de conversar com Samuel sobre este assunto…
Entretanto, os ecos da conversa tida com Sir F. em Edimburgo mantinham-se na minha cabeça, levando-me a concluir, talvez precipitadamente, que tudo não passava de uma grande ilusão criada por mentes geniais, mas uma ilusão que acabou, de certa maneira, por influenciar a sociedade, não só daquela época, mas de todo o tempo posterior.
Numa certa tarde de Junho, um ano após o nosso encontro em Edimburgo, recebi um telefonema de Samuel. Estava em Lisboa, onde ficaria por alguns dias. Combinámos encontrarmo-nos nessa noite em Alfama, num daqueles restaurantes com mesas e cadeiras ao ar livre, típicos da época dos Santos Populares naquele bairro antigo de Lisboa.
Os nossos encontros foram sempre em terreno neutro, nunca na residência de cada um ou em algum local mais pessoal, ou ligado a alguma escola iniciática. Sabia que Samuel tinha atingido os mais altos graus iniciáticos em algumas dessas escolas, assim como eu procurava trilhar por esse caminho, mas nunca nos referimos às nossas experiências nesse campo. Era uma espécie de território reservado.
Alfama cheirava a sardinha assada por todo o lado, e Samuel, apesar do calor de verão, vestia impecavelmente, fato completo, como de costume. Sentámo-nos a uma mesa de um restaurante ao ar livre, numa rua que descia em largos degraus e, como não podia deixar de ser, pedimos uma boa dose de sardinha assada e vinho tinto do Dão, meu preferido e também do Samuel.
- Chegou a alguma conclusão depois da nossa entrevista com Sir F. em Edimburgo? – Perguntou a certa altura Samuel.
- Não a uma conclusão, mas talvez a várias. – Respondi. – É difícil tirar conclusões em assuntos que parecem esgueirar-se entre os dedos A uma certeza aparente corresponde uma dúvida, e esta dá origem a outras.
- É verdade. Nestas coisas é muito difícil encontrar o “fio de Ariadne” que nos conduza a porto seguro. Ou você acredita, e neste caso as suas dúvidas são dissipadas pela crença, pois é assim que funcionam as igrejas, ou não acredita, e parte em busca de respostas difíceis de encontrar.
- Julgo que a segunda hipótese é a mais saudável. – Disse eu.
- Sem dúvida. Mas um caminho muito penoso. Por exemplo, como já vimos, os irmãos da Rosa+Cruz eram invisíveis, portanto, não existiam, ou, existiam se alguém acreditasse na sua existência. Isto moldava todo o pensamento e estrutura da sociedade. Ainda hoje é assim. Dá para entender?
- Entendo. Se acreditarmos seriamente em algo que não exista concretamente, esse algo passa a existir na nossa mente, mesmo que nunca se venha a concretizar.
- É isso. Esse é o mistério das religiões. Não se baseiam elas todas em mitos ou lendas?
- De facto. Mas as ideias rosacruzes acabaram por se concretizar, não é?
- O que é que quer dizer com isso?
- Quero dizer que as ideias rosacruzes acabaram por se concretizar em associações fundadas a partir do século dezoito. O que me diz de Martines de Pasqually, Willermoz e Saint-Martin? Para não falar em Cagliostro, Jacob Boehme e outros?
- Vejo que andou a pesquisar bastante. O que é que eu acho? Gostaria de saber o que Andreae pensaria. Seria certamente interessante.
- Mas não acha que eles colocaram no “terreno” as ideias rosacruzes?
- Em parte, sim. Não podemos afirmar que Pasqually fosse rosacruz ou partidário das ideias rosacruzes. Coloco-o mais próximo do ideal maçónico. No entanto, o seu pensamento seria inconcebível se não tivesse havido essa mitologia rosacruz.
- Inconcebível porquê? – Perguntei.
- A mitologia rosacruz, chamemos-lhe assim, produziu algo de prodigioso, abriu um vasto espaço para a manifestação de actividades e fenómenos antes proibidos pela censura católica.
- Compreendo. – Respondi. - Pasqually era uma figura estranha. Dizia que o conhecimento que tinha recebera-o por herança do seu pai. Ora, como ninguém sabe quem ele era, também ninguém sabe quem era o pai.
- Certo. Não se sabe realmente qual a sua origem. Uns dizem que era português, cujo nome verdadeiro seria Martins de Pascoais, outros afirmam o seu nascimento em Espanha, outros dão-no como francês ou suíço. Mas de uma coisa há certeza, que ele era um judeu convertido.
- Porquê? – Perguntei.
- Porque a doutrina que propunha e que está patente no livro “Tratado de Reintegração dos Seres” é típica do cristianismo judeu, algo que se considerava extinto há muito tempo.
- Ele fundou várias ordens, principalmente a que ficou mais famosa, a ordem dos “Elus Cohens” [Sacerdotes Eleitos]. Acha que essas ordens estavam mais próximas da Maçonaria?
- Sem dúvida. Embora se tratasse de uma maçonaria operativa, ou seja, com rituais em que havia invocações mágicas ou espirituais, em que se activavam energias consideradas divinas. Esses rituais continham uma teurgia em que se invocavam seres espirituais inteligentes, como os anjos.
- Uma espécie de espiritismo? Como é que essas práticas podem ser consideradas maçónicas?
- Bem, Pasqually dizia que o seu ritual era uma tradução de uma “Constituição e Patente” que fora concedida a seu pai por Charles Stuart, rei da Escócia, Irlanda e Inglaterra, Grão-Mestre de todas as Lojas maçónicas sobre a Terra. Mas para compreender isto precisamos de saber o que era a Maçonaria nos séculos dezoito e dezanove, pois hoje, ainda que haja semelhanças, evoluiu para algo um pouco diferente. A Maçonaria do século dezoito estava ligada intimamente à Casa Real dos Situat. Não há hoje dúvidas de que as primeiras Lojas foram fundadas em Inglaterra ou na Escócia, havendo implícita uma herança escocesa, pois até as Lojas francesas se intitulavam de “Maçonaria Escocesa”. Na época, o grau de cavaleiro maçónico era importante quando concedido por um rei. Combinar a Escócia com as lendas dos templários ali exilados, criava uma nova mitologia à qual, não era estranha a mitologia rosacruz. Podemos dizer, sem errar muito, que a Maçonaria de Pasqually era uma Maçonaria Teosófica, à qual aderiram sem reservas iniciais, Willermoz e Saint-Martin.
- Parece-me, - disse eu, - que essa Maçonaria de Pasqually pouco tinha a ver com a Maçonaria que se estendeu desde o Reino Unido até à França e Alemanha. Parece-me mais uma resposta católica ao rosacrucianismo protestante. Mas isto pode ser um grande disparate.
- Não. Não é disparate nenhum se pensarmos que desde o início houve grandes clivagens entre a Maçonaria jacobita e a Maçonaria pró Stuart. Os maçons jacobitas defendiam que a Maçonaria renascera na Europa durante o período das Cruzadas, e depois, juntamente com os mistérios trazidos do Oriente pelos rosacruzes, estabelecera-se definitivamente na sociedade. Deste modo a Maçonaria propunha-se restaurar a unidade primitiva do homem, a restauração da perfeição adâmica preconizada por Pasqually.
- Isso é um pouco confuso. – Disse eu.
- Para confundir ainda mais, - disse Samuel, rindo, - um tal de Von Hund criou o Rito da “Estrita Observância”, a presumida continuação de uma ordem secreta templária que tinha sobrevivido à perseguição do Papa e de Filipe de França. Dizia-se então que os verdadeiros segredos residiam aqui, na “Estrita Observância”, e não entre as Lojas jacobitas.
- Complicado. – Disse eu. – Mas o que é que isso tem a ver com o rosacrucianismo?
- A ideia rosacruz foi a base a partir da qual tudo se desenvolveu. Nada teria sido possível sem essa abertura proporcionada pela ideia rosacruz. Essa ideia era a da construção de uma sociedade renascida em Cristo, uma sociedade ideal e fraterna, sem os defeitos que permeavam a sociedade do século dezassete. Para mim, a Maçonaria lançou-se à conquista dessa ideia de duas formas: através do catolicismo jacobita, e é aqui que entra Pasqually; ou pela via templária, reformista, anti-católica e escocesa.
O jantar tinha chegado ao fim. Sem dar por isso, eu tinha comido uma dúzia de sardinhas e Samuel outro tanto. Descemos a rua até às imediações de Santa Apolónia, passando pela Casa dos Bicos, uma construção de que eu não gostava, por achá-la absurda e porque a beleza de Lisboa antiga não precisava daquilo. Continuámos a conversa caminhando em direcção ao Terreiro do Paço.
- Pelo que entendi até agora, - disse eu, - a Maçonaria é a herdeira natural da ideia rosacruz transposta para o concreto sob a forma de Lojas, Ritos e rituais. Certo?
- É provável que seja assim. – Respondeu Samuel
- Onde é que entram Willermoz e Saint-Martin?
- Saint-Martin, referindo-se a Pasqually, terá declarado um dia que se tratava de um homem extraordinário, mas que era o único que não conseguia entender.
- Isso pressupõe uma certa divergência entre os dois.
- Sim. Saint-Martin nunca aceitou muito bem a necessidade da teurgia no ritual. Dizia que para encontrar Cristo ou a essência divina, não eram necessárias essas invocações.
- Mas Saint-Martin era um místico.
- Sim, sem dúvida. Ele sistematizou as ideias de Pasqually num sistema que veio a chamar-se Martinismo, o que não quer dizer que ele aprovaria algumas correntes martinistas actuais, que se desviaram da verdadeira essência preconizada por ele.
- É correcto dizer-se que o Martinismo é o esoterismo cristão?
- Julgo que sim, pelo menos o Martinismo idealizado por Saint-Martin. Ele achava que a “Queda” podia ser superada através da regeneração e reintegração na verdadeira luz. Isto era possível através do que ele chamava de “acto do Reparador, ou seja, Cristo.
- E qual a ligação que pode ser estabelecida entre Saint-Martin e a Fraternidade Rosa+Cruz?
- Ele era denominado “O Filósofo Desconhecido”, o que pode ter vários significados. Mas um filósofo desconhecido tem muito a ver com uma fraternidade invisível, não é?
Chegámos nesta altura ao Terreiro do Paço. Tomámos um táxi, deixei Samuel no hotel Ritz, onde estava hospedado, e segui para casa. Prometemos encontrarmo-nos brevemente para continuarmos esta conversa, logo que a agenda de Samuel, sobrecarregada com reuniões, inclusive com o Primeiro-ministro, o permitisse

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