Vimos na crónica anterior que Ísis, Osíris, Hórus, Seth e outros deuses podem ter existido realmente, governando o Egipto durante alguns milhares de anos. Ao fim desses milhares de anos terão passado o poder a semideuses, filhos das relações sexuais que os deuses e as deusas terão realizado com os humanos e, mais tarde, para os humanos. Estes terão copiado e prosseguido com os costumes dos deuses em que o faraó, o rei, o senhor das duas coroas do Egipto, correspondentes ao Alto e Baixo Egipto, só poderia casar ou ter como esposa principal uma sua irmã de sangue, dado que, como faraó, a sua origem era divina.
Esta noção de origem divina ficou de tal forma inculcada nos costumes e inconsciente colectivo que foi transposta para as civilizações que se seguiram. Em Roma, o imperador fazia cunhar moedas com a sua efígie, fazia levantar estátuas em sua honra e fazia-se adorar como deus. Na Idade Média, apesar do domínio absoluto do cristianismo, os reis e imperadores consideravam-se de origem divina, e a classe nobre tinha sangue azul, uma referência simbólica à sua presumível origem divina. Exemplo desta ideia foi a crise criada entre Frederico I, imperador do Sacro Império Romano, e a Santa Sé: Frederico não aceitou ser coroado imperador pelo Papa porque não reconhecia nenhuma autoridade na Terra acima dele, uma vez que ele, como imperador, era de origem divina.
No Egipto, como em toda a parte, as coisas foram-se transformando gradualmente e, ao fim de alguns milhares de anos, as histórias dos deuses passaram à condição de lendas ou mitos, o que, para a racionalidade ocidental, é o mesmo que dizer que são fruto da imaginação e que nunca existiram realmente. Joseph Campbell, escritor e especialista em mitologia, afirmou que os nossos sonhos constituem os nossos mitos privados, pertencentes apenas ao imaginário do sonhador. Mas os mitos são sonhos públicos, pertencentes a todo o mundo, universais no seu simbolismo metafísico.
Os deuses terão iniciado os humanos na religião, no culto a si próprios, como uma forma de controlo sobre os humanos, mas também, muito provavelmente, para enaltecer o seu ego. Daí resultou a religião egípcia e o culto aos vários deuses representados por ícones gravados em milhares de pedras e monumentos.
A deusa mais adorada em todo o Egipto, em todas as épocas e em toda a região mediterrânica, foi Ísis. Muitas das capelas e lugares dedicados a Maria Madalena na costa norte do Mediterrâneo eram antigos locais de culto a Ísis sob diferentes nomes. Como aconteceu com grande parte dos cultos pagãos, o cristianismo transformou-os em cultos cristãos, substituindo o seu nome original pelo de uma santa qualquer.
Ísis é a grande deusa egípcia, esposa e irmã de Osíris, e mãe de Hórus. Ísis é a alma apaixonada:
“Vem a mim!
Eu sou a boca que transporta a vida,
Eu sou a filha do conhecimento dentro do seu centro
Dirigindo os demónios da serpente dentro da sua cabeça.
Eu sou a filha das estrelas do meu pai por causa do conhecimento.
Eu sou a sua filha…
Eu sou Ísis, divina Natur, e Senhora das Palavras Mágicas da Alma,
Ouvindo palavras verdadeiras de todas as bocas que podem morder.”
Por este texto do Antigo Egipto ficamos a saber que Ísis é: a doadora da vida, a fonte do conhecimento, a serpente Kundalini, uma deusa filha das estrelas e a natureza em toda a sua pujança. O mito de Ísis preserva elementos dos mais antigos pensamentos filosóficos da nossa raça, dos nossos sonhos mais profundos transportados para imagens universais com dezenas de milhares de anos.
No Antigo Egipto, a símbolo de lealdade e devoção não era o cão fiel, o melhor amigo do homem era a sua própria esposa. O hieróglifo para o nome de Ísis era o mesmo que para Osíris, identificação da alma com o trono ou o assento do ser. Mas tinha uma pequena diferença: Osíris tinha o olho hieróglifo acrescentado. Ísis era apenas o trono sem o olho, uma vez que o amor é uma função natural da escura e misteriosa função da alma. O amor pode viver na escuridão.
Ísis é a esposa e a contraparte feminina de Osíris mas, mais especialmente, Ísis é a alma apaixonada, representando todos os níveis, estados, formas e experiências do amor que a alma humana é capaz.
No fascínio egípcio pelo mistério da alma da mulher, Ísis é a esposa leal, é a amante, a mãe, a sedutora, a bruxa, a prostituta, a guia, a protectora, a enfermeira, a irmã, a companheira e sempre, acima de tudo, o poder leal ao lado do trono
Ísis representava todas as formas de ligação, de amizade, de amor e de sexo criados entra as pessoas. Ela é a electricidade, a magia, a química desses laços e de todos os seus perigos. Muitos dos templos dedicados a Ísis eram mais do que locais cerimoniais. Eram escolas e centros de aconselhamento para mulheres. As suas sacerdotisas eram professoras, guias, terapeutas, parteiras, assim como anfitriãs (!?) e carpideiras profissionais.
“A sua irmã era a sua guarda,
Ela que afasta os inimigos,
Que pára as acções do perturbador
Pelo poder da sua expressão bocal.
A língua esperta cujo discurso não falha,
Eficaz na palavra de comando,
Poderosa Ísis que protege o irmão,
Que o viu sem roupa.”
O número da Grande Deusa é nove porque ela é aquela força unificadora juntando a eternidade e a realidade, representada pelos quatro pontos cardeais dos céus e pelos quatro pontos cardeais do espaço/tempo. Estes oito estão ligados pelo nono, a coluna da vida da deusa, a ligação entre os céus e a Terra que é cada alma vivente. Ela é a Árvore da Vida que suporta o mundo, juntando as duas dimensões separadas da eternidade e da realidade. Ela é a serpente da coluna espinal através da qual as energias da eternidade se vertem para a realidade. Ela é a coluna que segura o céu. Ela é o céu e a Terra, e os nossos seres viventes são formados à volta das suas energias vertendo-se para a realidade a partir da dimensão Divina.
“Salve, A Grande de muitos nomes…
Tu de quem as entidades divinas aparecem neste teu nome de Mut-Isis!
Tu-que-fazes a garganta respirar,
Filha de Re, quem ele cuspiu da sua boca neste teu nome de Tefnut!
Ó Neith que apareceu no teu barco neste teu nome de Mut!
Ó Mãe Venerável, tu que subjugas os teus adversários neste teu nome de Nekhebet!
Oh Tu-que-sabes-como-fazer-uso-correcto-do-coração,
Tu que triunfas sobre os teus inimigos neste teu nome de Sekhmet!
É A DE OURO… a senhora dos bêbados, da musica, da dança, do incenso, da coroa, das jovens mulheres,
Que os homens aclamam porque são seus amantes!”
O que acontecia no Antigo Egipto era o mesmo que acontece hoje entre nós: a deusa assumia várias expressões conforme se tratasse de esposa, de amante, de mãe, de guerreira, etc. Hoje, exceptuando as funções menos próprias da moral cristã, como amante, prostituta, etc., acontece o mesmo com o culto às várias Nossas Senhoras, que são expressões de uma mesma divindade.
Os gregos identificavam Ísis com as suas próprias deusas, também aqui nas várias expressões da mesma divindade: como fornecedora do grão e protectora das colheitas, ela era Demeter; como deusa do amor, ela era Afrodite; como esposa do rei dos deuses, ela era Hecate, a deusa grega da magia, cujo nome derivava directamente do egípcio, onde “palavras mágicas” era “heka”; como protótipo da mulher humana, ela era Io, amada por Zeus e transformada numa vaca, que é a mesma deusa egípcia, uma das expressões de Ísis, Hathor.
Por detrás das suas muitas faces e nomes há um e o mesmo divino desconhecido, o mesmo mistério da coerência do ser.
Havia no Egipto um vocabulário inteiro de símbolos religiosos na devoção a Ísis, resultante das experiências de vida do ser humano.
A vida era considerada uma viagem da alma, uma peregrinação ao longo do rio (a enorme influência do rio Nilo na cultura egípcia) ou mesmo uma viagem por mar. Os perigos do mundo eram a vista do mar escuro – a devoção a Ísis era o navio e o porto seguro de chegada.
A própria Ísis era o mastro e a vela da viagem da alma através da vida. Os crentes viam-se a si mesmos como jardineiros que cultivavam o jardim das suas almas. Os sacerdotes de Ísis eram verdadeiros filósofos que devotavam as suas vidas a atingirem a emocional e imediata percepção da divindade.
Nos tempos de Ptolomeu (300 a.C.) a comunidade devotada a Ísis era chamada de Ecclesia, uma estrutura e organização adoptadas mais tarde pela assembleia-geral grega e, através de Bizâncio e Alexandria, pelo cristianismo. No entanto, somente as formas exteriores foram preservadas. Perdeu-se o que de mais íntimo havia no culto da Senhora, como Ísis era chamada. O verdadeiro significado da Senhora foi enterrado debaixo das camadas patriarcais e dos dogmas da interpretação cristã.
Ísis é mostrada como mulher completa em todos os seus aspectos e estágios da vida. A sua feminilidade era estudada tão ao pormenor que as muitas das suas faces ou expressões eram personificadas em outras tantas divindades numa combinação de diferentes coroas e ornamentos da cabeça. Toda a expressão masculina tem uma contraparte feminina no reconhecimento da dualidade universal da natureza, mas os muitos aspectos de Ísis, identificados pelas coroas e vários atributos, representam as muitas faces do amor experimentado no mundo humano.
Ela foi o protótipo de todas as deusas das terras civilizadas e incivilizadas. Era adorada nas suas múltiplas formas, transformada através do paganismo na “Grande Mãe”.
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