Estas histórias são relatos vividos pessoalmente, ou por gente que conheci e que se perdeu no redemoinho do tempo. Estas histórias aconteceram, foram verdadeiras, tive apenas o cuidado de mudar o nome dos personagens, preservando o seu anonimato. Foram escritas de memória, portanto, é natural e possível haver algumas imprecisões, principalmente no que se refere a datas.
I – O VISTO
Em Setembro de 1975, enquanto se amontoavam nos cais os pertences dos portugueses que abandonavam Angola, Luanda estava quase cercada. Forças das guerrilhas lutavam entre si, tentando conquistar a cidade e garantir a independência para as suas hostes. O MPLA controlava Luanda, mas a sua situação era frágil, do sul subia uma coluna heterogenia de guerrilheiros que, aparentemente, não encontravam resistência. Valeu ao MPLA os soldados cubanos e os “órgãos de Estaline” que, apoiados por aviões russos, desbarataram a coluna, o perigo principal para a sua hegemonia.
A independência de Angola foi declarada às 23 horas do dia 11 de Novembro, por Agostinho Neto, o líder do MPLA. Mas antes disso, a 6 de Novembro, já o Brasil de Ernesto Geisel, tinha reconhecido essa independência, talvez numa corrida para tentar substituir em Angola a presença portuguesa. Quando a maior parte dos países do mundo só reconheceu a independência em 1976, o Brasil foi o primeiro, 5 dias antes da data marcada. Na sequência da independência, o Brasil resolveu retomar os voos da Varig entre Luanda e o Rio de Janeiro, com escala em Recife.
Foi assim que eu fui parar a Angola, em meados de 76, negociar com a TAAG, a herdeira da DTA, o reinício dos voos entre Angola e o Brasil. Junto da Embaixada de Angola em Lisboa obtive o necessário visto no passaporte para poder entrar naquele país, agora independente.
Viajei para Luanda num velho B707 da TAAG, numa cabine de 1ª classe sem qualquer revestimento interior. O ar condensava-se no tecto e depois caía sobre os passageiros na forma de gotas de água.
Durante a viagem tentei imaginar como é que iria encontrar aquela cidade que eu conhecia tão bem, por lá ter vivido muitos anos e depois visitado várias vezes por ano.
Antes da chegada tive que preencher uma ficha, onde me era pedido para explicar o motivo da viagem e quanto dinheiro eu levava.
Após o desembarque e enquanto caminhava para o edifício do aeroporto, consegui ver alguns aviões MIG, mais ou menos camuflados junto da pista. Seguiu-se a revista na Alfândega, a minha mala revirada sem qualquer espécie de cuidado, e depois a revista pessoal, em que me foi retirada a carteira para contarem o dinheiro que eu levava e se correspondia ao que tinha declarado na ficha.
No controlo da polícia uma agente grande e gorda olhou para mim com ar de desprezo e arrancou-me, literalmente, o passaporte da mão. Abriu o passaporte e ficou a olhar para o visto que me tinha sido passado na Embaixada de Angola em Lisboa.
- O que é isto? – Perguntou ela com voz autoritária.
- Isso é o meu visto de entrada. – Respondi.
- Visto de entrada? Não pode ser, isto é falso. Os nossos vistos não são assim. Isto aqui é muito diferente. – Fez sinal a dois soldados armados com metralhadoras, que logo se vieram colocar junto de mim, um de cada lado. Ficou a olhar para mim, talvez à espera que eu dissesse alguma coisa. Mantive-me calado.
- Quem é que passou o visto? – Perguntou.
- A vossa Embaixada em Lisboa. – Respondi.
- Não, não pode ser. As embaixadas não estão autorizadas a passar vistos.
E agora? Os soldados a meu lado mexiam-se nervosos. Comecei a pensar que podia ser preso por tentar entrar em Angola com um visto considerado falso. Comecei a imaginar a minha situação e como é que conseguiria entrar em contacto com a Embaixada portuguesa em Luanda. Pensei que a Ludovina me pudesse ajudar.
A Ludovina era o meu único contacto em Luanda. Descobrira recentemente que era militante do MPLA, onde talvez tivesse uma função importante, pois, como verifiquei mais tarde, movia-se à vontade por todo o lado e em todas as situações. Mas a Ludovina não estava ali, devia estar no exterior do aeroporto à minha espera.
A situação foi salva pelo aparecimento de um graduado, que se acercou da agente e lhe perguntou o que se passava. A agente explicou-lhe, mostrando-lhe o passaporte. A reacção dele foi imediata:
- Sua burra! Não vê que isto é um visto da nossa Embaixada em Portugal?
A mulher ainda tentou dizer alguma coisa, mas ele não a deixou falar, mandou-a despachar-se, que havia uma fila de gente para ser atendida.
Respirei aliviado. Humilhada com a bronca recebida perante mim e perante quem estava presente, carimbou o passaporte e atirou-mo com um ar de desprezo no rosto. Os soldados voltaram para os seus lugares e eu encaminhei-me para a saída, onde Ludovina me esperava.
1 comentário:
Olá Pina. Foi muito bom entrar nesta casa de memórias...Afinal Histórias são isso...Memórias que vivem em nós..Vivem no Mundo.
Gostei de receber esta História...
Continue...
Um Abraço da Ilda Oliveira de Portugal
Até Breve
Irmõ da Palavra
Enviar um comentário