Não tenho nada contra o Espiritismo enquanto religião, nas suas mais diversas formas, sejam as sistematizadas por Allan Kardec ou outras, ou ainda as que resultaram de fusão com ritos africanos, como é o caso da Umbanda. Também não tenho nada contra os espíritas, pois cada um acredita no que quer, segue a religião com que melhor se identifica, e ninguém tem nada com isso, pois daqui vem o ditado de que “religião não se discute”.
Pois bem, isto é verdade, mas a coisa muda de figura quando um livro atinge os escaparates das livrarias e da Internet, com o estranho título de “Novas Utopias”, supostamente ditado a um médium pelo espírito do antigo arcebispo de Olinda e Recife. E digo estranho título porque “utopia” tem um significado que tem mais a ver com o imaginário, com o irreal, do que com algum plano concreto, basta consultar qualquer dicionário de língua portuguesa. Portanto, não se percebe bem o que quererá dizer esse título, “Novas Utopias”. Será que as velhas são irealizáveis e agora se inventam novas para que se possam vir a realizar? Ou o livro, é ele próprio imaginário?
A publicação de um livro, seja qual for a sua origem, implica o sentido crítico dos seus leitores, independentemente de vir a ser ou não um “best seller”, pois há livros bons que nunca foram isso, e livros menos bons que bateram recordes de vendas, como é o caso do “Código Da Vinci”. Mas em todos os casos existe a crítica, favorável ou não, sem relação directa com as vendas efectuadas. Depois, a crítica é sempre subjectiva, pois pode-se não gostar de um livro que a maioria gosta, ou gostar daquele que essa mesma maioria repudia. Por exemplo, um dos grandes sucessos dos últimos tempos é o livro “O Caçador de Pipas”, de um autor afegão, livro que considero apenas entre o razoável e o medíocre, mas que deve o seu sucesso à oportunidade da publicação retratando a realidade do Afeganistão dos talibãs.
Há certamente centenas de milhares de obras, supostamente psicografadas, o que quer dizer escritas por espíritos através de méduns, não só nas livrarias espíritas, mas também nas outras. Mas, por estranho que pareça, nunca encontrei a menor crítica a qualquer dessas obras, o que mais tenho encontrado são textos prosélitos e divulgadores dessas obras. O que é que acontece? Não acredito que não haja bastante gente com dúvidas sobre a autenticidade de muitas dessas obras. Têm medo de expressar o seu pensamento, não vá “o diabo tecê-las” e esses espíritos voltarem-se contra si?
Julgo que o cerne do problema está no facto dessas obras, de alguma forma, tomarem o carácter religioso e, como disse acima, “religião não se discute”. Por outro lado, parece-me que muitos não têm coragem de abordar a questão da autenticidade de determinada obra por não poderem provar que seja falsa, da mesma maneira que não se pode provar que seja verdadeira. Então ficamos nessa zona cinzenta em que a crença toma para si a veracidade de determinada comunicação.
Ao escrever este texto não estou a colocar-me numa posição de total criticismo a essas manifestações, pois presenciei muitas em vários lugares e situações diferentes, o que me levou a concluir que algo se passa a outro nível além do físico, para o que ainda não encontrei respostas adequadas. Mas esta posição não me obriga a aceitar “gato por lebre”, que é o que acontece inúmeras vezes.
Ao procurar informação sobre esse livro “Novas Utopias”, em que, aparentemente, o espírito de Helder Câmara se terá manifestado através de um médium, encontrei algo de curioso num dos blogs consultados:
“- O médium afirmou nas primeiras páginas do livro que era a sua primeira psicografia...
- O livro foi prefaciado por três pessoas que conheceram profundamente D.Helder Camara enquanto encarnado. Elogios à obra... nenhum questionamento quanto a autenticidade do autor;
- Não conheço o médium ou saiba algo a respeito de seus trabalhos; Paulo”
Estas questões são colocadas por um tal Paulo, que parece ser espírita ou conhece o meio. No entanto, essas questões podem lançar algumas dúvidas sobre a autenticidade da comunicação: como primeira obra psicografada, foi logo a do espírito de Hélder Câmara, e não sob a forma de textos avulsos, como costuma ser corrente, mas logo um livro; é óbvio que as pessoas escolhidas para prefaciar o livro só poderiam dizer bem dele, ninguém iria escolher pessoas que não estivessem de acordo com o livro ou que lhe fizessem alguma crítica.
A esperança que ressalta do texto divulgado de que a Igreja Católica venha a reconhecer o erro em que tem incorrido ao longo dos séculos em repudiar a reencarnação ou a existência da vida após a morte, é uma esperança infundada. O facto do livro se referir ao espírito de um sacerdote católico, não vai certamente mudar uma vírgula na doutrina católica, assente há séculos em dogmas de céu, inferno e purgatório, e ressurreição dos mortos.
Mas o mais interessante do texto divulgado via Internet e que resume a manifestação de Hélder Câmara, é que não contém novidade nenhuma – reflecte o pensamento conhecido do antigo arcebispo, as suas preocupações sociais, o seu posicionamento político e o seu devotado amor à Igreja e por isso, do lado de lá, continua padre. Ou seja, do lado de lá, segundo ele ou o seu espírito, é tudo igual ao lado de cá, os mesmos problemas, as mesas incompreensões, as pessoas reproduzem lá o que foram e as mesmas situações que produziram cá. Sem querer fazer piada, gostaria de saber se do lado de lá as pessoas comem, se unem sexualmente e fazem outras coisas, como no texto se diz: “A minha rotina de trabalho é, mais ou menos, a mesma. Levanto-me, porque aqui também se descansa um pouco, e vamos desenvolver actividades para as quais nos colocamos à disposição”. Então, parece que mesmo sob a forma de espírito, também se dorme e descansa… Diz também que se coloca à disposição para desenvolver actividades. À disposição de quem? Isto pressupõe uma organização e uma hierarquia.
Para finalizar esta curta crónica e não querendo tirar conclusões sobre a veracidade da obra, conhecendo-se a postura política de Dom Hélder Câmara, que foi inclusive perseguido pela ditadura militar, é estranho que uma obra desta natureza apareça justamente num ano eleitoral. Cada um que tire as suas conclusões e, se estiver interessado, por favor faça os seus comentários.
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