quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Histórias de Angola

Estas histórias são relatos vividos pessoalmente, ou por gente que conheci e que se perdeu no redemoinho do tempo. Estas histórias aconteceram, foram verdadeiras, tive apenas o cuidado de mudar o nome dos personagens, preservando o seu anonimato. Foram escritas de memória, portanto, é natural e possível haver algumas imprecisões, principalmente no que se refere a datas.

I – O VISTO

Em Setembro de 1975, enquanto se amontoavam nos cais os pertences dos portugueses que abandonavam Angola, Luanda estava quase cercada. Forças das guerrilhas lutavam entre si, tentando conquistar a cidade e garantir a independência para as suas hostes. O MPLA controlava Luanda, mas a sua situação era frágil, do sul subia uma coluna heterogenia de guerrilheiros que, aparentemente, não encontravam resistência. Valeu ao MPLA os soldados cubanos e os “órgãos de Estaline” que, apoiados por aviões russos, desbarataram a coluna, o perigo principal para a sua hegemonia.
A independência de Angola foi declarada às 23 horas do dia 11 de Novembro, por Agostinho Neto, o líder do MPLA. Mas antes disso, a 6 de Novembro, já o Brasil de Ernesto Geisel, tinha reconhecido essa independência, talvez numa corrida para tentar substituir em Angola a presença portuguesa. Quando a maior parte dos países do mundo só reconheceu a independência em 1976, o Brasil foi o primeiro, 5 dias antes da data marcada. Na sequência da independência, o Brasil resolveu retomar os voos da Varig entre Luanda e o Rio de Janeiro, com escala em Recife.
Foi assim que eu fui parar a Angola, em meados de 76, negociar com a TAAG, a herdeira da DTA, o reinício dos voos entre Angola e o Brasil. Junto da Embaixada de Angola em Lisboa obtive o necessário visto no passaporte para poder entrar naquele país, agora independente.
Viajei para Luanda num velho B707 da TAAG, numa cabine de 1ª classe sem qualquer revestimento interior. O ar condensava-se no tecto e depois caía sobre os passageiros na forma de gotas de água.
Durante a viagem tentei imaginar como é que iria encontrar aquela cidade que eu conhecia tão bem, por lá ter vivido muitos anos e depois visitado várias vezes por ano.
Antes da chegada tive que preencher uma ficha, onde me era pedido para explicar o motivo da viagem e quanto dinheiro eu levava.
Após o desembarque e enquanto caminhava para o edifício do aeroporto, consegui ver alguns aviões MIG, mais ou menos camuflados junto da pista. Seguiu-se a revista na Alfândega, a minha mala revirada sem qualquer espécie de cuidado, e depois a revista pessoal, em que me foi retirada a carteira para contarem o dinheiro que eu levava e se correspondia ao que tinha declarado na ficha.
No controlo da polícia uma agente grande e gorda olhou para mim com ar de desprezo e arrancou-me, literalmente, o passaporte da mão. Abriu o passaporte e ficou a olhar para o visto que me tinha sido passado na Embaixada de Angola em Lisboa.
- O que é isto? – Perguntou ela com voz autoritária.
- Isso é o meu visto de entrada. – Respondi.
- Visto de entrada? Não pode ser, isto é falso. Os nossos vistos não são assim. Isto aqui é muito diferente. – Fez sinal a dois soldados armados com metralhadoras, que logo se vieram colocar junto de mim, um de cada lado. Ficou a olhar para mim, talvez à espera que eu dissesse alguma coisa. Mantive-me calado.
- Quem é que passou o visto? – Perguntou.
- A vossa Embaixada em Lisboa. – Respondi.
- Não, não pode ser. As embaixadas não estão autorizadas a passar vistos.
E agora? Os soldados a meu lado mexiam-se nervosos. Comecei a pensar que podia ser preso por tentar entrar em Angola com um visto considerado falso. Comecei a imaginar a minha situação e como é que conseguiria entrar em contacto com a Embaixada portuguesa em Luanda. Pensei que a Ludovina me pudesse ajudar.
A Ludovina era o meu único contacto em Luanda. Descobrira recentemente que era militante do MPLA, onde talvez tivesse uma função importante, pois, como verifiquei mais tarde, movia-se à vontade por todo o lado e em todas as situações. Mas a Ludovina não estava ali, devia estar no exterior do aeroporto à minha espera.
A situação foi salva pelo aparecimento de um graduado, que se acercou da agente e lhe perguntou o que se passava. A agente explicou-lhe, mostrando-lhe o passaporte. A reacção dele foi imediata:
- Sua burra! Não vê que isto é um visto da nossa Embaixada em Portugal?
A mulher ainda tentou dizer alguma coisa, mas ele não a deixou falar, mandou-a despachar-se, que havia uma fila de gente para ser atendida.
Respirei aliviado. Humilhada com a bronca recebida perante mim e perante quem estava presente, carimbou o passaporte e atirou-mo com um ar de desprezo no rosto. Os soldados voltaram para os seus lugares e eu encaminhei-me para a saída, onde Ludovina me esperava.