Conversas com Samuel Dalatando
II – Maria Madalena – 2ª Parte
Samuel estava sentado numa das escadas, chapéu na cabeça por causa do Sol e olhava a pequena multidão que passava em grande algazarra com um sorriso onde se notava uma certa ironia.
- Divertindo-se com o que vê? – Perguntei.
- Um pouco. Estava tentando imaginar o que trouxe a maior parte desta gente aqui a Compostela.
- Fé! – Respondi.
- Fé? Pode ser que haja alguma. Existe muita curiosidade, talvez alguma crença e muita esperança de que algo de extraordinário aconteça. Talvez esperem ver, por alguma espécie de milagre, o Santiago passeando-se por estas bandas.
- Não foi por aqui que ele andou? – Perguntei sorrindo.
- Não sei. Parece que o Tiago que aqui é venerado nunca saiu de Jerusalém.
- Mas toda essa história do cadáver ter aparecido na ria coberto de vieiras, junto de um barco que teria aqui chegado à deriva…
- Pois é. O cadáver devia ser daquele bispo herege, como se chamava ele?
- Não me lembro do nome, mas sei de quem está a falar. Então esta história toda do Santiago é uma fraude…
- Sim. A história como é contada é sem dúvida falsa. Este “Caminho” é muito anterior à chegada do cristianismo a estas paragens. Mas você sabe isto.
- É verdade. Figo imaginando o que esses “peregrinos”, se lhes podemos chamar assim, procuravam no “Caminho”, e o que eles buscavam no cabo Finisterra.
- Mistérios, meu amigo. Mistérios.
Sentei-me junto dele olhando as pessoas que passavam e pareciam divertir-se tirando fotos uns aos outros.
- Santiago é um nome estranho – disse eu, – parece que é a contracção de Santo com Iago ou Yago, mas esse nome não tem correspondência nas outras línguas e muito menos no hebraico, de onde suponho ele tenha sido originado. Por exemplo, segundo alguns linguistas, Tiago e Jaime têm origem indirecta no latim “Iacobus”, que é o Jacob em hebraico e o nosso Jacó. Como é que Jacó deu Tiago? Em inglês é James, que é o mesmo que o nosso Jaime, mas em francês, outra coisa estranha, é Jacques.
- De facto é estranho, concordo. Mas não é Santiago o patrono dos alquimistas? Portanto, em alquimia tudo se transforma, não é verdade?
Percebi que ele estava a brincar, mas era verdade, Santiago é o patrono dos alquimistas, entre outras coisas.
- Ele é geralmente mostrado em estátuas e pinturas com um livro nas mãos, o que quer dizer que, além de ser o patrono dos alquimistas, é o símbolo do conhecimento, não é verdade? – Disse eu.
- Assim parece. – Concordou Samuel. – Por isso este “Caminho” foi percorrido por peregrinos desde a mais remota antiguidade. Antes da cristianização, o que é que os caminhantes buscavam? Conhecimento? Se era isso, quem eram os mestres? Os Iago? Aqueles que foram chamados para construir o Templo de Salomão, segundo a lenda maçónica? Os hebreus eram um povo nómada, viviam em tendas, pastoreavam rebanhos, não sabiam trabalhar a pedra. Mas os Iago sabiam, eram mestres no tratamento da pedra.
Ficámos ali sentados durante algum tempo olhando o vaivém das pessoas que não paravam de caminhar nas ruas ao redor da catedral, como se de um ritual mágico inconsciente se tratasse. Olhei aquelas lajes da calçada, onde não era permitido o trânsito de carros, apenas para cargas e descargas, e pensei em quanto de história aquelas velhas pedras não teriam sido testemunhas. Quantos bruxos e bruxas não teriam sido perseguidos pela Igreja omnipotente, de cujo poder ressaltava o esplendor da catedral. Gostava de passear naquelas ruas estreitas olhando as velhas pedras e as lojas de recordações com as suas bruxas montadas em vassouras voando sobre fios de corda e rostos amigáveis atrás dos balcões, espreitar para o interior escuro das tabernas e ouvir o som das gaitas de foles, da música tradicional galega, herança celta presente nas tradições pagãs ainda vivas, apesar da hegemonia de séculos da Igreja Católica.
Eu não sabia na altura que bem próximo da catedral havia uma igreja dedicada a Maria Madalena, só o soube bem mais tarde. Não sei se estaria aberta ao público ou se conteria no seu interior alguma coisa interessante, julgo que não. Seria uma das quarenta e seis igrejas existentes em Santiago de Compostela.
Samuel propôs irmos petiscar o polvo à galega num local que ele conhecia e que não era longe, umas ruas adiante e que, segundo ele, servia o melhor polvo da Galiza. Exagero dele, mas na verdade o polvo estava delicioso. Foi nessa altura, depois de também saborearmos um vinho tinto da casa, que encetei a conversa sobre Maria Madalena.
- Você acha que há alguma verdade nessa história de Maria Madalena e do grupo que a acompanhava desde Jerusalém e que terá desembarcado no sul de França? Haverá alguma verdade dela ter sido casada com Jesus e ter dado origem à chamada “Linhagem Sagrada”, a dinastia Merovíngia?
Samuel olhou-me com uma espécie de sorriso trocista, dando a entender que a minha pergunta trazia “água no bico”.
- Você quer saber o que é que eu penso ou quer que eu confirme o que já sabe?
- Depende do que disser… - respondi sorrindo também.
- Sim, acho que há alguma verdade nessa história toda, e há ainda muita coisa oculta que ainda não conseguimos desvendar. Por outro lado, acho também que há muito de imaginário em livros que têm sido publicados a respeito deste assunto. Era isto que estava à espera que eu dissesse?
- Sim, mais ou menos isso, porque sei que o Samuel se interessa há algum tempo por essa história. Mas disse que ainda há muita coisa oculta. O quê, por exemplo?
- O quê? Ora vamos ver… Quem é que acha que era José de Arimateia?
Fiquei surpreso com a pergunta. Ora quem é que seria José de Arimateia, uma figura algo enigmática, mas mesmo assim perfeitamente identificado no Novo Testamento.
- Penso que era um membro do Sinédrio, discípulo oculto de Jesus, rico e proprietário do túmulo para onde terão levado o corpo de Jesus e de onde ressuscitou conforme os Evangelhos. – Respondi.
- Muito bem. Ele chamar-se-ia José de Arimateia porque se supõe que era de Arimateia, talvez uma aldeia da Judeia da altura. Mas acho que ninguém sabe onde ficava essa tal de Arimateia. Por outro lado, como é que alguém podia ser um discípulo oculto de Jesus? Já pensou nisso?
- De facto devia ser muito difícil na altura manter-se oculto, se é que era realmente um discípulo…
- Pois bem, segundo algumas interpretações, José não era o nome de uma pessoa, mas uma espécie de título nobiliário.
- Como? – Estranhei.
- Parece que José era um título patriarcal que indicava o herdeiro directo da Casa de David.
- Mas esse herdeiro não era Jesus?
- Sim, e José seria o herdeiro directo dele.
- Então quem era, na verdade, José de Arimateia? – Perguntei, não muito convencido desta teoria, inteiramente nova para mim.
- José de Arimateia seria então Tiago, irmão de Jesus.
- Qual Tiago? O Maior, o Menor ou o Justo?
- Julgo que seria o Maior.
- Então o Santiago daqui, de Compostela, seria o José de Arimateia, que teria levado o Santo Graal para Inglaterra, depois de ter passado pela Ibéria?
- Pois é! Não é estranha toda esta história?
- E há alguma confirmação dela?
- É claro que não. Nós estamos aqui em Compostela, e no que é que esta gente toda acredita? Que o túmulo de Tiago está ali debaixo do altar-mor, que ele andou por aqui a doutrinar as gentes da Galiza e que o Caminho é uma criação da Igreja. Por outro lado, os cépticos dizem que nada disso é verdade, que Tiago foi decapitado em Jerusalém por Herodes.
- Então onde é que está a verdade?
- Você sabe que a verdade é algo muito difícil de estabelecer. Porque as visões mudam conforme os interesses em jogo. Para a Igreja, Tiago andou por aqui, e isso é o que importa; para os historiadores não há muitos documentos, e os que existem também não são muito fiáveis, pois passámos séculos a adulterar e a criar documentos falsos. Restam-nos os mitos, que muitas vezes, por incrível que pareça, podem conter mais verdade do que todas as outras situações, porque os mitos, geralmente, baseiam-se em factos verdadeiros.
- De acordo. Mas também é verdade que os mitos foram muitas vezes utilizados para justificar determinadas situações, ou para apoiar outras.
- Sem dúvida. Mas os mitos nunca são fraudes – são sempre relatos mais ou menos fantásticos de determinados eventos que efectivamente aconteceram. Podem ser modificados ao longo do tempo pelo imaginário de cada um, que lhe vai acrescentando mais do que retirando pormenores, e pode acontecer que fique completamente desvirtuado em relação à sua origem, mas nunca será uma fraude. Fraude á o que a arqueologia, a religião e a política têm criado ao longo dos séculos, para servir apenas interesses próprios.
- A arqueologia também?
- Sim, também a arqueologia. Basta olhar para o que a arqueologia criou acerca do Egipto Antigo. Os chamados “egiptólogos” especializaram-se em criar teorias cuja comprovação nunca conseguiram, no entanto são-lhes creditadas essas teorias como se fossem descobertas notáveis. Na verdade não passam de fraudes.
- Voltando aos mitos… Esse mito de Maria Madalena…
- Para mim há uma verdade fundamental em toda essa história. Há muita coisa que a Igreja tem tentado ocultar, às vezes com bastante sucesso, mas essa ocultação não resiste a um estudo sério e desapaixonado. Primeiro que tudo não é nada provável que Jesus não fosse casado, pois para as leis judaicas da altura um homem da idade dele não seria visto com bons olhos se se mantivesse solteiro. João informa-nos do seu casamento no episódio das “Bodas de Canaan”, em que Jesus transforma a água em vinho.
- Mas o Evangelho de João diz que Jesus e sua mãe, Maria, eram convidados nesse casamento.
- É verdade. Mas esse episódio é o primeiro milagre relatado por João. Ora bem, se Jesus era convidado porque é que Maria, sua mãe, lhe diz que faltou o vinho? Ela já sabia que ele podia fazer um milagre, ou Jesus era o anfitrião, portanto o noivo, e cabia a ele providenciar o vinho para os convidados?
- Bem visto. Eu também já tinha pensado nisso.
- Não tenho dúvidas de que esse casamento era o do próprio Jesus, e a noiva seria, como tudo leva a crer, Maria Madalena, uma vez que era a discípula mais próxima do Mestre, uma situação que nem a própria Igreja hoje se atreve a contestar.
- De acordo, Jesus e Madalena eram casados. Julgo que a vinda para a Europa de vários membros ligados a ele se prende com todo um drama que se desenrolou em Jerusalém, cujo relato só conhecemos pelos Evangelhos, mas que na verdade não sabemos o que realmente aconteceu.
- É bem provável que José de Arimateia fosse o irmão de Jesus, Tiago, que de acordo com a tradição terá ido para Inglaterra, onde teria fundado uma abadia em Glastonbury, onde estaria também escondido o Santo Graal.
- Mas o Santo Graal não era o ventre grávido de Madalena?
- Essa é uma das interpretações. Se era um cálice, é interessante verificar que no fresco “A Última Ceia” de Leonardo Da Vinci não se vê um único cálice sobre a mesa. Mas saber o que era realmente o Santo Graal não importa muito. Sei que Maria Madalena veio para a Europa e sei onde estão os seus restos mortais.
- Quer dizer que o seu túmulo foi descoberto realmente pelo padre Saunière em Rennes-le-Château?
- Sim. O padre Saunière foi obrigado a calar-se por imposição da Igreja e não correu mais riscos porque na época a Igreja e a classe política em França não se entendiam e eram mesmo inimigos. Os vários governos republicanos foram diminuindo drasticamente o poder da Igreja e isso talvez tenha salvo a vida de Saunière.
Nesta altura já íamos no terceiro prato de polvo à galega e no segundo jarro de vinho. Samuel acabara de me dizer que sabia onde estavam os restos mortais de Madalena. Sei que Samuel mantinha relações de amizade com alguns dos mais proeminentes membros de governos franceses, principalmente do tempo de François Miterrand. O túmulo descoberto por Saunière fora guardado pelo governo francês e mantido algures como segredo de Estado, até que Miterrand resolvera dar-lhe um destino mais digno. Dan Brown, apesar da polémica gerada pelo livro, dá-nos uma clara pista da localização dos restos mortais de Madalena em “O Código Da Vinci”. Não é por acaso que ele termina esse livro dizendo: “A demanda do Santo Graal é literalmente uma demanda para ajoelhar diante dos ossos de Maria Madalena. Uma jornada para rezar aos pés da ostracizada”.
Muito antes de Dan Brown, Samuel revelou-me em segredo a localização exacta do túmulo de Madalena. Faltava-me ainda falar de Pierre Plantard e de toda a história do Priorado do Sião, supostamente uma organização secreta para preservar e defender a descendência de Jesus e Madalena. Mas, para surpresa daqueles que queriam acreditar que o Priorado do Sião era uma organização secreta que vinha desde os primórdios de cristianismo defendendo a presumível descendência de Jesus e Madalena, eis que os documentos depositados na Biblioteca de Paris se revelaram falsos e Plantard acabou por confessar que inventara tudo, pois o próprio Priorado do Sião fora registado em França por alturas dos anos 50 do século passado.
Mas teria existido, ou existiria ainda, esse Priorado do Sião, por este ou qualquer outro nome, Ordem secreta que teria dado origem à Ordem do Templo? Neste momento recordo as palavras de Raymond Bernard no seu livro “As Mansões Secretas da Rosacruz”:
“É assim que, a mando das onze altas esferas e, em ocasiões de importância excepcional, a mando geral das onze altas esferas, missionados foram enviados ao mundo e a certas organizações para trazer os perdidos de volta ao bom caminho. Foi também das onze altas esferas secretas que partiram os grandes movimentos cujo fim era reunir o que estava disperso ou dar novamente corpo a um egrégoro para o qual era chegado o momento de reviver, de ressurgir ao serviço da humanidade.
Foi nesta alta esfera secreta onde agora estamos , nesta cripta ferrata, que foi decidida a constituição da Ordem do Templo. Vejo a vossa estupefacção, mas esta revelação tinha que ser feita, tinha que ser feita hoje, esta noite e aqui, pois os tempos são vindos”.
Estas foram as palavras daquele que Bernard designa como “Cardeal Branco” e que para ele era o mais alto dignitário secreto da Ordem do Templo.
A noite aproximava-se com o Sol a tombar para ocidente, para o lugar que os peregrinos de antanho buscavam, talvez na esperança de receber alguma luz desse conhecimento antigo que repousava há milénios no fundo do Atlântico. Para a tradição esotérica esse conhecimento tinha sido preservado e guardado nas Escolas de Mistérios do Egipto antigo, transmitido mais tarde para grupos gnósticos e destes, para a essência do cristianismo.
Resolvemos pedir mais um jarro de vinho, enquanto eu pensava na forma de abordar a questão do Priorado do Sião.
- O que é que acha da história do Priorado do Sião e de Pierre Plantard? – Perguntei por fim.
Samuel olhou-me com curiosidade, tentando talvez adivinhar onde é que eu queria chegar.
- Você sabe que tudo não passou de uma fraude. – Respondeu.
- De acordo, mas será quer tudo se limitou a essa fraude perpetrada por Pierre Plantard?
- É claro que não, só os ingénuos podem acreditar que tudo se limitou à expressão exacerbada do ego desse senhor, que se dizia herdeiro legítimo do trono da França pela linha merovíngia.
- Eu tenho uma teoria sobre esse assunto, pois sempre achei que há qualquer coisa de errado com toda essa história.
- Uma teoria? Vamos ouvi-la. – Disse Samuel.
- Plantard era um homem inteligente, esteve sempre ligado à publicação de revistas, portanto era alguém também com bastante cultura. Sendo assim, não faz muito sentido que ele tenha falsificado todos aqueles documentos que depositou na Biblioteca de Paris, pois sabia que, mais cedo ou mais tarde, a falsificação iria ser descoberta.
- Sim, concordo. Realmente não faz muito sentido.
- Plantard era católico, ligado ao catolicismo mais conservador da França. Pela mesma razão era também simpatizante do nazismo, com que terá colaborado quando da invasão da França.
- Hum… estou a ver onde quer chegar…
- Qual a melhor maneira de denegrir e fazer cair no ridículo uma história?
Os olhos de Samuel brilharam ao responder.
- Criar uma história, cuja falsidade possa ser facilmente verificada. Faz todo o sentido. A Igreja era a grande interessada em fazer cair o assunto no ridículo, que foi o que aconteceu, pois houve logo uma montanha de críticas que se abateram sobre Plantard e sobre toda essa questão de Maria Madalena, mais o Priorado do Sião. Sim, meu amigo, acho que você não deverá estar muito longe da verdade.
A noite tinha caído sobre as velhas ruas de Santiago de Compostela. Saímos do pequeno restaurante e mergulhámos na multidão que continuava a apinhar as cercanias da catedral. Caminhámos em direcção ao hotel em que ambos estávamos hospedados e que distava uns bons dois quilómetros. Uma brisa fresca batia-nos no rosto e era agradável senti-la para desanuviar um pouco os vapores do álcool ingerido na forma de vinho galego. Esta foi a última vez que encontrei Samuel em Santiago de Compostela.