segunda-feira, 20 de junho de 2011

Cadernos Esotéricos

Conversas com Samuel Dalatando
II – Maria Madalena – 1ª Parte

Encontrei Samuel em Santiago de Compostela, numa tarde quente de Junho, aguardando-me sentado na escadaria da entrada lateral da Catedral, aquela entrada que dá para uma pequena praça cujo nome não me lembro. Não era a primeira vez que nos encontrávamos em Santiago, pois tanto ele como eu éramos visitantes assíduos. Durante anos fui assistindo a um certo esmorecimento da tradição de Santiago que, a pouco e pouco se foi transformando numa espécie de feira turística, em que o que mais contava eram as recordações que se compravam nas inúmeras lojas para esse fim, e as fotos que se tiravam fora e dentro da catedral. O “Caminho” era feito, na sua maioria, pelos entusiastas que tinham lido o livro do Paulo Coelho “Diário de um Mago”, e que julgavam encontrar por aquelas serranias alguma espécie de milagre que desse sentido às suas vidas.
Pensava isto enquanto me dirigia ao encontro de Samuel, caminhando pela rua do Vilar, que desembocava quase na pequena praça onde combinara encontrar-me com ele. Pensava também que toda a história de Santiago não passava de um embuste, de uma tradição inventada sobre uma tradição mais antiga que levava o “Caminho” até bem mais além da catedral, até ao cabo Finisterra. A antiguidade do “Caminho” perdia-se no tempo, até uma época anterior aos celtas e talvez até anterior a esse povo misterioso que ocupava as altas terras de Ibéria chamado “lígure”.
Mas não era a história de Santiago que me despertava a curiosidade nessa altura. Ainda não tinha sido publicado o livro do Dan Brown, “O Código Da Vinci”, mas eu tinha lido o livro “Maria Madalena e o Santo Graal” de Margaret Starbird, e “O Santo Graal e a Linhagem Sagrada”, de Michael Baigent, Richard Leigh Henry Lincoln. Teria, realmente, Maria Madalena, casado com Jesus e desse casamento ter nascido uma criança do sexo feminino chamada Sara?
Parece não haver dúvidas, pois as lendas não nascem do nada, de que após a presumível crucificação de Jesus, um barco transportando três Marias, Maria Madalena, Maria Jacobina, irmã de Maria, mãe de Jesus, e Maria Salomé, mãe de Tiago e João, teria aportado no sul de França, num local hoje conhecido como “Saintes-Maries de la Mer” (Santas Marias do Mar). Além da lenda, o nome desta localidade não pode ter aparecido por acaso. Sara estaria também nesse barco de fuga de Jerusalém e seria, segundo algumas lendas, uma escrava ao serviço de Jesus ou de Maria Madalena. Sara era negra e o seu culto insere-se na tradição das Virgens Negras. Este grupo teria sido recebido por ciganos e daí Sara ter-se tornado a sua padroeira.
Não consta em nenhum documento da época, nem em nenhum dos Evangelhos oficiais e apócrifos, que Maria Madalena ou Jesus tivessem uma escrava ao seu serviço. E não é credível que assim fosse. O mais que poderia ter acontecido era que Sara fosse uma das seguidoras de Jesus.
Mas se Sara era negra e filha de Jesus e Madalena, então, ou Jesus, ou Madalena, pelo menos um dos dois teria a cor negra, o que contraria em absoluto a crença de que ambos eram judeus. Mas será que eram mesmo judeus? De facto, as numerosas representações de Jesus ao longo dos últimos séculos, principalmente através de pintura, não mostram um homem com características judaicas.
Toda esta história parecia ter permanecido oculta ao longo dos séculos até ao dia em que um padre de uma pequena vila do sul de França, Rennes-le-Château, ao fazer obras na sua igreja teria encontrado um tesouro ali escondido pelos templários. Esse tesouro parecia tratar-se de documentos ou de uma prova de que Jesus e Madalena teriam tido descendentes os quais, chegados a França nessa viagem das três Marias, teriam posteriormente dado origem à dinastia Merovíngia, considerada linhagem sagrada por ser descendência de Jesus. Este achado ter-se-á passado em 1891, e o padre Bérenger Saunière terá enriquecido em função dessa descoberta, recebendo grandes somas de dinheiro para se manter calado e não revelar ao mundo o segredo que tinha encontrado, pois isso poderia abalar seriamente os alicerces da Igreja Católica, e do próprio Cristianismo.
Mas logo apareceu uma explicação para a súbita fortuna do padre Saunière: tratava-se de missas encomendadas de todo o mundo, pagas adiantadamente, tantas que o padre não teria nunca possibilidades de as realizar em vida. Estas encomendas de missas eram o resultado da publicidade que o padre Saunière fazia em jornais e revistas de todo o mundo.
Esta explicação sempre me pareceu estranha, pois não consigo imaginar um padre de uma remota igreja no sul de França a fazer publicidade para rezar missas em muitos jornais e revistas de vários países, alguns deles bem distantes como os E.U.A. e alguns países da América do Sul. Então esses países não tinham padres locais para rezar essas missas? Mais estranho ainda é o facto de que, apesar da explicação e do padre ter sido acusado de traficar as missas, nenhum dos supostos anúncios foi alguma vez encontrado. Para isto também se arranjou uma explicação: os anúncios eram publicados em suplementos de revistas e jornais, que eram normalmente utilizados para acender fogos de lareiras ou simplesmente jogados fora (!?).
Para provar que o dinheiro provinha realmente dessas missas encomendadas, encontrou-se um registo meticuloso das encomendas recebidas com o respectivo valor em dinheiro. O problema é que nada prova de que este registo foi de facto realizado pelo padre Saunière, ou se criado mais tarde para apoiar a tese de que o dinheiro provinha efectivamente dessas missas. Em toda esta situação de Rennes-le-Château, sempre me ficou a ideia de estar a lidar com algo fraudulento, em que se usaram vários meios para esconder algo que não interessava ser conhecido.
As obras realizadas pelo padre Saunière na igreja incluíram a criação de uma biblioteca e de uma torre dedicada a Maria Madalena. Foram ali gastas grandes somas de dinheiro cuja procedência se procurou esconder. O padre Saunière foi obrigado a deixar a sua igreja de Rennes-le-Château e condenado a uma pena também estranha: devia recolher-se a um retiro ou a um convento da sua escolha, dedicar-se a exercícios espirituais durante dez dias e, passados dois meses, apresentar um certificado de que, efectivamente, tinha feito os exercícios.
Na agenda pessoal do padre foi encontrada a seguinte nota com data de 21 de Setembro de 1891: “carta recebida de Granes, descoberta de um túmulo, chuva durante a noite.” Que túmulo seria esse encontrado durante as obras na igreja?
O bispo de Carcassone, participante activo de toda a história, acabou por ficar doente numa cadeira de rodas e foi desonerado da sua condição de bispo com a alegação de má administração e de ter gasto dinheiro em excesso sem qualquer justificação. Será que esse dinheiro era aquele que Saunière recebeu?
Tenho consciência de que o tema de Maria Madalena é difícil e complexo, num universo de fraudes e documentos forjados, como aqueles de Pierre Plantard acerca dos mestres do Priorado de Sião, e que já muito se escreveu a respeito, principalmente tentando criar uma atmosfera de falsidade, em que nada da história ou lenda de Maria Madalena seja verdadeiro, uma conclusão em que apenas há um interessado: a Igreja Católica e todas as variedades e vertentes saídas dela, como as várias seitas protestantes, muitas das quais se denominam hoje de igrejas evangélicas. Não creio que a história de Maria Madalena, caso seja verdadeira, possa constituir qualquer embaraço para a essência do Cristianismo, essência da qual toda a religião baseada nele se afastou.
Maria Madalena é pouco referida, ou claramente identificada, nos quatro Evangelhos do Novo Testamento, excepto na parte final, aquela que se refere à ressurreição de Jesus. Assim, em Mateus, é um anjo que vem anunciar a Maria Madalena e outra Maria, a ressurreição; em Marcos é um jovem vestido de branco que informa Madalena e Maria, mãe de Tiago e Salomé; em Lucas, são dois homens em roupas brilhantes que anunciam a ressurreição a Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago; em João, Jesus aparece a Maria Madalena, somente a ela, que depois vai anunciar a ressurreição aos discípulos. Com algumas diferenças entre eles, todos os quatro Evangelhos indicam Maria Madalena como a principal testemunha da ressurreição, o que, segundo o pensamento de alguns, é uma clara indicação do destaque de Maria Madalena entre os discípulos e junto de Jesus. Isto veio a ser confirmado pelos documentos achados em 1945 numa aldeia do Egipto chamada Nag Hammadi, documentos esses erradamente classificados como Evangelhos Apócrifos ou Evangelhos Gnósticos, mas como se trata de documentos diversos, não somente evangelhos, a classificação correcta seria a de biblioteca de Nag Hammadi.
Evidentemente que a preponderância da figura de Maria Madalena constituiu, desde o início do chamado “Cristianismo literalista”, aquele em que se baseou a religião, um grande embaraço para uma religião essencialmente patriarcal, em que a mulher tem um papel muito secundário, pois basta pensarmos que no início desse Cristianismo se discutia entre padres e bispos se a mulher tinha alma. E também não é por acaso que as ermidas, igrejas, capelas, grutas, dedicadas a Maria Madalena, foram aparecendo por toda a parte, principalmente no sul da Europa, na bacia mediterrânica, numa clara demonstração de culto por uma personagem que a Igreja se esforçou por tornar, pelo menos, controversa.
E foi assim que, no ano 591, o papa Gregório I (Gregório Magno) num sermão de Páscoa, declarou que Maria Madalena e Maria de Betânia, a prostituta, eram a mesma pessoa, caracterizando desta forma a figura de Madalena como prostituta, não havendo nada nos Evangelhos que confirmem essa declaração. Só se pode entender uma declaração desta natureza como mais um meio para denegrir aquela que poderia ser um reflexo da face feminina de Deus. E o facto da Igreja a ter elevado a santa não veio melhorar as coisas, pois para a maioria é santa por ser uma prostituta arrependida salva do pecado por Jesus.

(Continua)