sábado, 17 de dezembro de 2011

A IMPERMANÊNCIA E O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO

É conhecido o axioma atribuído ao químico francês Lavoisier de que, “na Natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Apesar das experiências com bombas nucleares terem dado indícios de que uma parte minúscula de matéria se perde durante uma explosão atómica, a regra continua válida, em meu entender, para todas as situações envolvendo a matéria. Até porque essa perda de matéria em explosões nucleares precisa de ser comprovada, coisa que parece não ter acontecido ainda. Se houver perda de matéria, ela vai para onde? Simplesmente desaparece? Vai para outra dimensão? Vai para um universo paralelo, como muitas das teorias actuais falam?
A pouco e pouco a ciência tem vindo a comprovar, cada vez com maiores evidências, o que os Antigos sabiam e que foi sendo transmitido de boca a ouvido ao longo dos séculos: tudo é vibração, tudo é energia. Depois da Física Quântica ter demonstrado que a matéria é um vastíssimo campo de energia onde acontecem as coisas mais extraordinárias, veio agora a “Teoria das Cordas” defender que a origem da matéria está justamente nessas pequeníssimas fontes de energia. Assim, parece já não haver nenhuma dúvida hoje de que tudo está em permanente transformação. Mesmo os materiais mais duros e que nos parecem indestrutíveis, estão em transformação resultante da vibração dos seus átomos, os quais vibram em frequências originadas pela sua constituição atómica. Isto aplica-se a toda a matéria e a todos os seres vivos, inclusive aos seres humanos, cujo corpo sofre também essa permanente transformação.
Devido a essa permanente vibração, tendo como consequência a permanente transformação, a impermanência surge como o estado natural de toda a Criação, seja no macrocosmos ou no microcosmos. Nada permanece igual por mais de um milionésimo de segundo. Esta é uma lei universal que temos muita dificuldade em compreender e aceitar – vejam-se os esforços desesperados contra o envelhecimento através de cirurgias e outras aplicações plásticas.
As religiões têm tido um papel importante no sentido de trazer algum conforto a essa angústia prometendo várias coisas depois da morte, situação que a generalidade das pessoas teme acima de tudo. A ressurreição dos mortos, a reencarnação (em termos espíritas), a entrada no “reino dos céus” ou no paraíso como recompensa para actos praticados em vida (cristianismo e islamismo), são algumas das promessas em que as pessoas tendem em acreditar. No entanto, apesar de tudo, o medo da morte persiste.
O medo da morte é um sentimento que garante a sobrevivência da espécie, pois se não houvesse esse medo não sei como seria o comportamento geral das pessoas. Há quem não tenha medo da morte, nomeadamente os iniciados, pois sabem que a morte é apenas a passagem de um estado para outro estado, por isso lhe chamam transição. Em termos actuais, de acordo com as últimas teorias científicas de que já falámos acima, será a passagem para uma outra dimensão, onde não sabemos se a impermanência permanece.
Um sentimento que procura atenuar essa angústia da morte é a esperança. Esperança em dias melhores que façam esquecer a incapacidade de aceitar a impermanência; esperança numa outra vida onde não haja sofrimento; esperança de que afinal, as coisas vão sempre melhorar. Sabemos que nem sempre acontece assim, ou quase nunca acontece assim – a esperança acaba por se revelar uma grande e enganadora ilusão. Para os gregos da antiguidade a esperança era algo de ruim, pois a esperança fora a única coisa que ficara no fundo da “Caixa de Pandora” quando esta a abriu e espalhou todos os males pelo mundo. Se a “Caixa” continha todos os males e não há ideia de que contivesse outras coisas além dos males, então a esperança também era um mal. Porque a esperança induz à ilusão de um futuro melhor, quando na verdade esse futuro será sempre o resultado do que fizermos agora.
A impermanência é a única permanência a que estamos sujeitos. Será que não existe nada permanente? Ignorando uma eventual resposta de que Deus é permanente, esta pergunta é um desafio que aqui deixo para quem quiser responder e comentar.

domingo, 2 de outubro de 2011

Cadernos Esotéricos

Conversas com Samuel Dalatando
II – Maria Madalena – 2ª Parte

Samuel estava sentado numa das escadas, chapéu na cabeça por causa do Sol e olhava a pequena multidão que passava em grande algazarra com um sorriso onde se notava uma certa ironia.
- Divertindo-se com o que vê? – Perguntei.
- Um pouco. Estava tentando imaginar o que trouxe a maior parte desta gente aqui a Compostela.
- Fé! – Respondi.
- Fé? Pode ser que haja alguma. Existe muita curiosidade, talvez alguma crença e muita esperança de que algo de extraordinário aconteça. Talvez esperem ver, por alguma espécie de milagre, o Santiago passeando-se por estas bandas.
- Não foi por aqui que ele andou? – Perguntei sorrindo.
- Não sei. Parece que o Tiago que aqui é venerado nunca saiu de Jerusalém.
- Mas toda essa história do cadáver ter aparecido na ria coberto de vieiras, junto de um barco que teria aqui chegado à deriva…
- Pois é. O cadáver devia ser daquele bispo herege, como se chamava ele?
- Não me lembro do nome, mas sei de quem está a falar. Então esta história toda do Santiago é uma fraude…
- Sim. A história como é contada é sem dúvida falsa. Este “Caminho” é muito anterior à chegada do cristianismo a estas paragens. Mas você sabe isto.
- É verdade. Figo imaginando o que esses “peregrinos”, se lhes podemos chamar assim, procuravam no “Caminho”, e o que eles buscavam no cabo Finisterra.
- Mistérios, meu amigo. Mistérios.
Sentei-me junto dele olhando as pessoas que passavam e pareciam divertir-se tirando fotos uns aos outros.
- Santiago é um nome estranho – disse eu, – parece que é a contracção de Santo com Iago ou Yago, mas esse nome não tem correspondência nas outras línguas e muito menos no hebraico, de onde suponho ele tenha sido originado. Por exemplo, segundo alguns linguistas, Tiago e Jaime têm origem indirecta no latim “Iacobus”, que é o Jacob em hebraico e o nosso Jacó. Como é que Jacó deu Tiago? Em inglês é James, que é o mesmo que o nosso Jaime, mas em francês, outra coisa estranha, é Jacques.
- De facto é estranho, concordo. Mas não é Santiago o patrono dos alquimistas? Portanto, em alquimia tudo se transforma, não é verdade?
Percebi que ele estava a brincar, mas era verdade, Santiago é o patrono dos alquimistas, entre outras coisas.
- Ele é geralmente mostrado em estátuas e pinturas com um livro nas mãos, o que quer dizer que, além de ser o patrono dos alquimistas, é o símbolo do conhecimento, não é verdade? – Disse eu.
- Assim parece. – Concordou Samuel. – Por isso este “Caminho” foi percorrido por peregrinos desde a mais remota antiguidade. Antes da cristianização, o que é que os caminhantes buscavam? Conhecimento? Se era isso, quem eram os mestres? Os Iago? Aqueles que foram chamados para construir o Templo de Salomão, segundo a lenda maçónica? Os hebreus eram um povo nómada, viviam em tendas, pastoreavam rebanhos, não sabiam trabalhar a pedra. Mas os Iago sabiam, eram mestres no tratamento da pedra.
Ficámos ali sentados durante algum tempo olhando o vaivém das pessoas que não paravam de caminhar nas ruas ao redor da catedral, como se de um ritual mágico inconsciente se tratasse. Olhei aquelas lajes da calçada, onde não era permitido o trânsito de carros, apenas para cargas e descargas, e pensei em quanto de história aquelas velhas pedras não teriam sido testemunhas. Quantos bruxos e bruxas não teriam sido perseguidos pela Igreja omnipotente, de cujo poder ressaltava o esplendor da catedral. Gostava de passear naquelas ruas estreitas olhando as velhas pedras e as lojas de recordações com as suas bruxas montadas em vassouras voando sobre fios de corda e rostos amigáveis atrás dos balcões, espreitar para o interior escuro das tabernas e ouvir o som das gaitas de foles, da música tradicional galega, herança celta presente nas tradições pagãs ainda vivas, apesar da hegemonia de séculos da Igreja Católica.
Eu não sabia na altura que bem próximo da catedral havia uma igreja dedicada a Maria Madalena, só o soube bem mais tarde. Não sei se estaria aberta ao público ou se conteria no seu interior alguma coisa interessante, julgo que não. Seria uma das quarenta e seis igrejas existentes em Santiago de Compostela.
Samuel propôs irmos petiscar o polvo à galega num local que ele conhecia e que não era longe, umas ruas adiante e que, segundo ele, servia o melhor polvo da Galiza. Exagero dele, mas na verdade o polvo estava delicioso. Foi nessa altura, depois de também saborearmos um vinho tinto da casa, que encetei a conversa sobre Maria Madalena.
- Você acha que há alguma verdade nessa história de Maria Madalena e do grupo que a acompanhava desde Jerusalém e que terá desembarcado no sul de França? Haverá alguma verdade dela ter sido casada com Jesus e ter dado origem à chamada “Linhagem Sagrada”, a dinastia Merovíngia?
Samuel olhou-me com uma espécie de sorriso trocista, dando a entender que a minha pergunta trazia “água no bico”.
- Você quer saber o que é que eu penso ou quer que eu confirme o que já sabe?
- Depende do que disser… - respondi sorrindo também.
- Sim, acho que há alguma verdade nessa história toda, e há ainda muita coisa oculta que ainda não conseguimos desvendar. Por outro lado, acho também que há muito de imaginário em livros que têm sido publicados a respeito deste assunto. Era isto que estava à espera que eu dissesse?
- Sim, mais ou menos isso, porque sei que o Samuel se interessa há algum tempo por essa história. Mas disse que ainda há muita coisa oculta. O quê, por exemplo?
- O quê? Ora vamos ver… Quem é que acha que era José de Arimateia?
Fiquei surpreso com a pergunta. Ora quem é que seria José de Arimateia, uma figura algo enigmática, mas mesmo assim perfeitamente identificado no Novo Testamento.
- Penso que era um membro do Sinédrio, discípulo oculto de Jesus, rico e proprietário do túmulo para onde terão levado o corpo de Jesus e de onde ressuscitou conforme os Evangelhos. – Respondi.
- Muito bem. Ele chamar-se-ia José de Arimateia porque se supõe que era de Arimateia, talvez uma aldeia da Judeia da altura. Mas acho que ninguém sabe onde ficava essa tal de Arimateia. Por outro lado, como é que alguém podia ser um discípulo oculto de Jesus? Já pensou nisso?
- De facto devia ser muito difícil na altura manter-se oculto, se é que era realmente um discípulo…
- Pois bem, segundo algumas interpretações, José não era o nome de uma pessoa, mas uma espécie de título nobiliário.
- Como? – Estranhei.
- Parece que José era um título patriarcal que indicava o herdeiro directo da Casa de David.
- Mas esse herdeiro não era Jesus?
- Sim, e José seria o herdeiro directo dele.
- Então quem era, na verdade, José de Arimateia? – Perguntei, não muito convencido desta teoria, inteiramente nova para mim.
- José de Arimateia seria então Tiago, irmão de Jesus.
- Qual Tiago? O Maior, o Menor ou o Justo?
- Julgo que seria o Maior.
- Então o Santiago daqui, de Compostela, seria o José de Arimateia, que teria levado o Santo Graal para Inglaterra, depois de ter passado pela Ibéria?
- Pois é! Não é estranha toda esta história?
- E há alguma confirmação dela?
- É claro que não. Nós estamos aqui em Compostela, e no que é que esta gente toda acredita? Que o túmulo de Tiago está ali debaixo do altar-mor, que ele andou por aqui a doutrinar as gentes da Galiza e que o Caminho é uma criação da Igreja. Por outro lado, os cépticos dizem que nada disso é verdade, que Tiago foi decapitado em Jerusalém por Herodes.
- Então onde é que está a verdade?
- Você sabe que a verdade é algo muito difícil de estabelecer. Porque as visões mudam conforme os interesses em jogo. Para a Igreja, Tiago andou por aqui, e isso é o que importa; para os historiadores não há muitos documentos, e os que existem também não são muito fiáveis, pois passámos séculos a adulterar e a criar documentos falsos. Restam-nos os mitos, que muitas vezes, por incrível que pareça, podem conter mais verdade do que todas as outras situações, porque os mitos, geralmente, baseiam-se em factos verdadeiros.
- De acordo. Mas também é verdade que os mitos foram muitas vezes utilizados para justificar determinadas situações, ou para apoiar outras.
- Sem dúvida. Mas os mitos nunca são fraudes – são sempre relatos mais ou menos fantásticos de determinados eventos que efectivamente aconteceram. Podem ser modificados ao longo do tempo pelo imaginário de cada um, que lhe vai acrescentando mais do que retirando pormenores, e pode acontecer que fique completamente desvirtuado em relação à sua origem, mas nunca será uma fraude. Fraude á o que a arqueologia, a religião e a política têm criado ao longo dos séculos, para servir apenas interesses próprios.
- A arqueologia também?
- Sim, também a arqueologia. Basta olhar para o que a arqueologia criou acerca do Egipto Antigo. Os chamados “egiptólogos” especializaram-se em criar teorias cuja comprovação nunca conseguiram, no entanto são-lhes creditadas essas teorias como se fossem descobertas notáveis. Na verdade não passam de fraudes.
- Voltando aos mitos… Esse mito de Maria Madalena…
- Para mim há uma verdade fundamental em toda essa história. Há muita coisa que a Igreja tem tentado ocultar, às vezes com bastante sucesso, mas essa ocultação não resiste a um estudo sério e desapaixonado. Primeiro que tudo não é nada provável que Jesus não fosse casado, pois para as leis judaicas da altura um homem da idade dele não seria visto com bons olhos se se mantivesse solteiro. João informa-nos do seu casamento no episódio das “Bodas de Canaan”, em que Jesus transforma a água em vinho.
- Mas o Evangelho de João diz que Jesus e sua mãe, Maria, eram convidados nesse casamento.
- É verdade. Mas esse episódio é o primeiro milagre relatado por João. Ora bem, se Jesus era convidado porque é que Maria, sua mãe, lhe diz que faltou o vinho? Ela já sabia que ele podia fazer um milagre, ou Jesus era o anfitrião, portanto o noivo, e cabia a ele providenciar o vinho para os convidados?
- Bem visto. Eu também já tinha pensado nisso.
- Não tenho dúvidas de que esse casamento era o do próprio Jesus, e a noiva seria, como tudo leva a crer, Maria Madalena, uma vez que era a discípula mais próxima do Mestre, uma situação que nem a própria Igreja hoje se atreve a contestar.
- De acordo, Jesus e Madalena eram casados. Julgo que a vinda para a Europa de vários membros ligados a ele se prende com todo um drama que se desenrolou em Jerusalém, cujo relato só conhecemos pelos Evangelhos, mas que na verdade não sabemos o que realmente aconteceu.
- É bem provável que José de Arimateia fosse o irmão de Jesus, Tiago, que de acordo com a tradição terá ido para Inglaterra, onde teria fundado uma abadia em Glastonbury, onde estaria também escondido o Santo Graal.
- Mas o Santo Graal não era o ventre grávido de Madalena?
- Essa é uma das interpretações. Se era um cálice, é interessante verificar que no fresco “A Última Ceia” de Leonardo Da Vinci não se vê um único cálice sobre a mesa. Mas saber o que era realmente o Santo Graal não importa muito. Sei que Maria Madalena veio para a Europa e sei onde estão os seus restos mortais.
- Quer dizer que o seu túmulo foi descoberto realmente pelo padre Saunière em Rennes-le-Château?
- Sim. O padre Saunière foi obrigado a calar-se por imposição da Igreja e não correu mais riscos porque na época a Igreja e a classe política em França não se entendiam e eram mesmo inimigos. Os vários governos republicanos foram diminuindo drasticamente o poder da Igreja e isso talvez tenha salvo a vida de Saunière.
Nesta altura já íamos no terceiro prato de polvo à galega e no segundo jarro de vinho. Samuel acabara de me dizer que sabia onde estavam os restos mortais de Madalena. Sei que Samuel mantinha relações de amizade com alguns dos mais proeminentes membros de governos franceses, principalmente do tempo de François Miterrand. O túmulo descoberto por Saunière fora guardado pelo governo francês e mantido algures como segredo de Estado, até que Miterrand resolvera dar-lhe um destino mais digno. Dan Brown, apesar da polémica gerada pelo livro, dá-nos uma clara pista da localização dos restos mortais de Madalena em “O Código Da Vinci”. Não é por acaso que ele termina esse livro dizendo: “A demanda do Santo Graal é literalmente uma demanda para ajoelhar diante dos ossos de Maria Madalena. Uma jornada para rezar aos pés da ostracizada”.
Muito antes de Dan Brown, Samuel revelou-me em segredo a localização exacta do túmulo de Madalena. Faltava-me ainda falar de Pierre Plantard e de toda a história do Priorado do Sião, supostamente uma organização secreta para preservar e defender a descendência de Jesus e Madalena. Mas, para surpresa daqueles que queriam acreditar que o Priorado do Sião era uma organização secreta que vinha desde os primórdios de cristianismo defendendo a presumível descendência de Jesus e Madalena, eis que os documentos depositados na Biblioteca de Paris se revelaram falsos e Plantard acabou por confessar que inventara tudo, pois o próprio Priorado do Sião fora registado em França por alturas dos anos 50 do século passado.
Mas teria existido, ou existiria ainda, esse Priorado do Sião, por este ou qualquer outro nome, Ordem secreta que teria dado origem à Ordem do Templo? Neste momento recordo as palavras de Raymond Bernard no seu livro “As Mansões Secretas da Rosacruz”:
“É assim que, a mando das onze altas esferas e, em ocasiões de importância excepcional, a mando geral das onze altas esferas, missionados foram enviados ao mundo e a certas organizações para trazer os perdidos de volta ao bom caminho. Foi também das onze altas esferas secretas que partiram os grandes movimentos cujo fim era reunir o que estava disperso ou dar novamente corpo a um egrégoro para o qual era chegado o momento de reviver, de ressurgir ao serviço da humanidade.
Foi nesta alta esfera secreta onde agora estamos , nesta cripta ferrata, que foi decidida a constituição da Ordem do Templo. Vejo a vossa estupefacção, mas esta revelação tinha que ser feita, tinha que ser feita hoje, esta noite e aqui, pois os tempos são vindos”.
Estas foram as palavras daquele que Bernard designa como “Cardeal Branco” e que para ele era o mais alto dignitário secreto da Ordem do Templo.
A noite aproximava-se com o Sol a tombar para ocidente, para o lugar que os peregrinos de antanho buscavam, talvez na esperança de receber alguma luz desse conhecimento antigo que repousava há milénios no fundo do Atlântico. Para a tradição esotérica esse conhecimento tinha sido preservado e guardado nas Escolas de Mistérios do Egipto antigo, transmitido mais tarde para grupos gnósticos e destes, para a essência do cristianismo.
Resolvemos pedir mais um jarro de vinho, enquanto eu pensava na forma de abordar a questão do Priorado do Sião.
- O que é que acha da história do Priorado do Sião e de Pierre Plantard? – Perguntei por fim.
Samuel olhou-me com curiosidade, tentando talvez adivinhar onde é que eu queria chegar.
- Você sabe que tudo não passou de uma fraude. – Respondeu.
- De acordo, mas será quer tudo se limitou a essa fraude perpetrada por Pierre Plantard?
- É claro que não, só os ingénuos podem acreditar que tudo se limitou à expressão exacerbada do ego desse senhor, que se dizia herdeiro legítimo do trono da França pela linha merovíngia.
- Eu tenho uma teoria sobre esse assunto, pois sempre achei que há qualquer coisa de errado com toda essa história.
- Uma teoria? Vamos ouvi-la. – Disse Samuel.
- Plantard era um homem inteligente, esteve sempre ligado à publicação de revistas, portanto era alguém também com bastante cultura. Sendo assim, não faz muito sentido que ele tenha falsificado todos aqueles documentos que depositou na Biblioteca de Paris, pois sabia que, mais cedo ou mais tarde, a falsificação iria ser descoberta.
- Sim, concordo. Realmente não faz muito sentido.
- Plantard era católico, ligado ao catolicismo mais conservador da França. Pela mesma razão era também simpatizante do nazismo, com que terá colaborado quando da invasão da França.
- Hum… estou a ver onde quer chegar…
- Qual a melhor maneira de denegrir e fazer cair no ridículo uma história?
Os olhos de Samuel brilharam ao responder.
- Criar uma história, cuja falsidade possa ser facilmente verificada. Faz todo o sentido. A Igreja era a grande interessada em fazer cair o assunto no ridículo, que foi o que aconteceu, pois houve logo uma montanha de críticas que se abateram sobre Plantard e sobre toda essa questão de Maria Madalena, mais o Priorado do Sião. Sim, meu amigo, acho que você não deverá estar muito longe da verdade.
A noite tinha caído sobre as velhas ruas de Santiago de Compostela. Saímos do pequeno restaurante e mergulhámos na multidão que continuava a apinhar as cercanias da catedral. Caminhámos em direcção ao hotel em que ambos estávamos hospedados e que distava uns bons dois quilómetros. Uma brisa fresca batia-nos no rosto e era agradável senti-la para desanuviar um pouco os vapores do álcool ingerido na forma de vinho galego. Esta foi a última vez que encontrei Samuel em Santiago de Compostela.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Cadernos Esotéricos

Conversas com Samuel Dalatando
II – Maria Madalena – 1ª Parte

Encontrei Samuel em Santiago de Compostela, numa tarde quente de Junho, aguardando-me sentado na escadaria da entrada lateral da Catedral, aquela entrada que dá para uma pequena praça cujo nome não me lembro. Não era a primeira vez que nos encontrávamos em Santiago, pois tanto ele como eu éramos visitantes assíduos. Durante anos fui assistindo a um certo esmorecimento da tradição de Santiago que, a pouco e pouco se foi transformando numa espécie de feira turística, em que o que mais contava eram as recordações que se compravam nas inúmeras lojas para esse fim, e as fotos que se tiravam fora e dentro da catedral. O “Caminho” era feito, na sua maioria, pelos entusiastas que tinham lido o livro do Paulo Coelho “Diário de um Mago”, e que julgavam encontrar por aquelas serranias alguma espécie de milagre que desse sentido às suas vidas.
Pensava isto enquanto me dirigia ao encontro de Samuel, caminhando pela rua do Vilar, que desembocava quase na pequena praça onde combinara encontrar-me com ele. Pensava também que toda a história de Santiago não passava de um embuste, de uma tradição inventada sobre uma tradição mais antiga que levava o “Caminho” até bem mais além da catedral, até ao cabo Finisterra. A antiguidade do “Caminho” perdia-se no tempo, até uma época anterior aos celtas e talvez até anterior a esse povo misterioso que ocupava as altas terras de Ibéria chamado “lígure”.
Mas não era a história de Santiago que me despertava a curiosidade nessa altura. Ainda não tinha sido publicado o livro do Dan Brown, “O Código Da Vinci”, mas eu tinha lido o livro “Maria Madalena e o Santo Graal” de Margaret Starbird, e “O Santo Graal e a Linhagem Sagrada”, de Michael Baigent, Richard Leigh Henry Lincoln. Teria, realmente, Maria Madalena, casado com Jesus e desse casamento ter nascido uma criança do sexo feminino chamada Sara?
Parece não haver dúvidas, pois as lendas não nascem do nada, de que após a presumível crucificação de Jesus, um barco transportando três Marias, Maria Madalena, Maria Jacobina, irmã de Maria, mãe de Jesus, e Maria Salomé, mãe de Tiago e João, teria aportado no sul de França, num local hoje conhecido como “Saintes-Maries de la Mer” (Santas Marias do Mar). Além da lenda, o nome desta localidade não pode ter aparecido por acaso. Sara estaria também nesse barco de fuga de Jerusalém e seria, segundo algumas lendas, uma escrava ao serviço de Jesus ou de Maria Madalena. Sara era negra e o seu culto insere-se na tradição das Virgens Negras. Este grupo teria sido recebido por ciganos e daí Sara ter-se tornado a sua padroeira.
Não consta em nenhum documento da época, nem em nenhum dos Evangelhos oficiais e apócrifos, que Maria Madalena ou Jesus tivessem uma escrava ao seu serviço. E não é credível que assim fosse. O mais que poderia ter acontecido era que Sara fosse uma das seguidoras de Jesus.
Mas se Sara era negra e filha de Jesus e Madalena, então, ou Jesus, ou Madalena, pelo menos um dos dois teria a cor negra, o que contraria em absoluto a crença de que ambos eram judeus. Mas será que eram mesmo judeus? De facto, as numerosas representações de Jesus ao longo dos últimos séculos, principalmente através de pintura, não mostram um homem com características judaicas.
Toda esta história parecia ter permanecido oculta ao longo dos séculos até ao dia em que um padre de uma pequena vila do sul de França, Rennes-le-Château, ao fazer obras na sua igreja teria encontrado um tesouro ali escondido pelos templários. Esse tesouro parecia tratar-se de documentos ou de uma prova de que Jesus e Madalena teriam tido descendentes os quais, chegados a França nessa viagem das três Marias, teriam posteriormente dado origem à dinastia Merovíngia, considerada linhagem sagrada por ser descendência de Jesus. Este achado ter-se-á passado em 1891, e o padre Bérenger Saunière terá enriquecido em função dessa descoberta, recebendo grandes somas de dinheiro para se manter calado e não revelar ao mundo o segredo que tinha encontrado, pois isso poderia abalar seriamente os alicerces da Igreja Católica, e do próprio Cristianismo.
Mas logo apareceu uma explicação para a súbita fortuna do padre Saunière: tratava-se de missas encomendadas de todo o mundo, pagas adiantadamente, tantas que o padre não teria nunca possibilidades de as realizar em vida. Estas encomendas de missas eram o resultado da publicidade que o padre Saunière fazia em jornais e revistas de todo o mundo.
Esta explicação sempre me pareceu estranha, pois não consigo imaginar um padre de uma remota igreja no sul de França a fazer publicidade para rezar missas em muitos jornais e revistas de vários países, alguns deles bem distantes como os E.U.A. e alguns países da América do Sul. Então esses países não tinham padres locais para rezar essas missas? Mais estranho ainda é o facto de que, apesar da explicação e do padre ter sido acusado de traficar as missas, nenhum dos supostos anúncios foi alguma vez encontrado. Para isto também se arranjou uma explicação: os anúncios eram publicados em suplementos de revistas e jornais, que eram normalmente utilizados para acender fogos de lareiras ou simplesmente jogados fora (!?).
Para provar que o dinheiro provinha realmente dessas missas encomendadas, encontrou-se um registo meticuloso das encomendas recebidas com o respectivo valor em dinheiro. O problema é que nada prova de que este registo foi de facto realizado pelo padre Saunière, ou se criado mais tarde para apoiar a tese de que o dinheiro provinha efectivamente dessas missas. Em toda esta situação de Rennes-le-Château, sempre me ficou a ideia de estar a lidar com algo fraudulento, em que se usaram vários meios para esconder algo que não interessava ser conhecido.
As obras realizadas pelo padre Saunière na igreja incluíram a criação de uma biblioteca e de uma torre dedicada a Maria Madalena. Foram ali gastas grandes somas de dinheiro cuja procedência se procurou esconder. O padre Saunière foi obrigado a deixar a sua igreja de Rennes-le-Château e condenado a uma pena também estranha: devia recolher-se a um retiro ou a um convento da sua escolha, dedicar-se a exercícios espirituais durante dez dias e, passados dois meses, apresentar um certificado de que, efectivamente, tinha feito os exercícios.
Na agenda pessoal do padre foi encontrada a seguinte nota com data de 21 de Setembro de 1891: “carta recebida de Granes, descoberta de um túmulo, chuva durante a noite.” Que túmulo seria esse encontrado durante as obras na igreja?
O bispo de Carcassone, participante activo de toda a história, acabou por ficar doente numa cadeira de rodas e foi desonerado da sua condição de bispo com a alegação de má administração e de ter gasto dinheiro em excesso sem qualquer justificação. Será que esse dinheiro era aquele que Saunière recebeu?
Tenho consciência de que o tema de Maria Madalena é difícil e complexo, num universo de fraudes e documentos forjados, como aqueles de Pierre Plantard acerca dos mestres do Priorado de Sião, e que já muito se escreveu a respeito, principalmente tentando criar uma atmosfera de falsidade, em que nada da história ou lenda de Maria Madalena seja verdadeiro, uma conclusão em que apenas há um interessado: a Igreja Católica e todas as variedades e vertentes saídas dela, como as várias seitas protestantes, muitas das quais se denominam hoje de igrejas evangélicas. Não creio que a história de Maria Madalena, caso seja verdadeira, possa constituir qualquer embaraço para a essência do Cristianismo, essência da qual toda a religião baseada nele se afastou.
Maria Madalena é pouco referida, ou claramente identificada, nos quatro Evangelhos do Novo Testamento, excepto na parte final, aquela que se refere à ressurreição de Jesus. Assim, em Mateus, é um anjo que vem anunciar a Maria Madalena e outra Maria, a ressurreição; em Marcos é um jovem vestido de branco que informa Madalena e Maria, mãe de Tiago e Salomé; em Lucas, são dois homens em roupas brilhantes que anunciam a ressurreição a Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago; em João, Jesus aparece a Maria Madalena, somente a ela, que depois vai anunciar a ressurreição aos discípulos. Com algumas diferenças entre eles, todos os quatro Evangelhos indicam Maria Madalena como a principal testemunha da ressurreição, o que, segundo o pensamento de alguns, é uma clara indicação do destaque de Maria Madalena entre os discípulos e junto de Jesus. Isto veio a ser confirmado pelos documentos achados em 1945 numa aldeia do Egipto chamada Nag Hammadi, documentos esses erradamente classificados como Evangelhos Apócrifos ou Evangelhos Gnósticos, mas como se trata de documentos diversos, não somente evangelhos, a classificação correcta seria a de biblioteca de Nag Hammadi.
Evidentemente que a preponderância da figura de Maria Madalena constituiu, desde o início do chamado “Cristianismo literalista”, aquele em que se baseou a religião, um grande embaraço para uma religião essencialmente patriarcal, em que a mulher tem um papel muito secundário, pois basta pensarmos que no início desse Cristianismo se discutia entre padres e bispos se a mulher tinha alma. E também não é por acaso que as ermidas, igrejas, capelas, grutas, dedicadas a Maria Madalena, foram aparecendo por toda a parte, principalmente no sul da Europa, na bacia mediterrânica, numa clara demonstração de culto por uma personagem que a Igreja se esforçou por tornar, pelo menos, controversa.
E foi assim que, no ano 591, o papa Gregório I (Gregório Magno) num sermão de Páscoa, declarou que Maria Madalena e Maria de Betânia, a prostituta, eram a mesma pessoa, caracterizando desta forma a figura de Madalena como prostituta, não havendo nada nos Evangelhos que confirmem essa declaração. Só se pode entender uma declaração desta natureza como mais um meio para denegrir aquela que poderia ser um reflexo da face feminina de Deus. E o facto da Igreja a ter elevado a santa não veio melhorar as coisas, pois para a maioria é santa por ser uma prostituta arrependida salva do pecado por Jesus.

(Continua)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Conversas com Samuel Dalatando

Conversas com Samuel Dalatando
I – A Fraternidade Rosa-Cruz – 7ª Parte

Samuel voltou de Brasília e deixou-me um recado no hotel dizendo que ficaria no Rio mais alguns dias e que assim poderíamos encontrar-nos. Telefonei-lhe logo que recebi o recado e combinámos encontrar-nos num restaurante muito conhecido na Av. Vieira Souto, em Ipanema, junto da praia do Arpoador. Sabemos que hoje esse restaurante serve também um cozido à portuguesa de sabor carioca, na época não o servia, mas a sua comida era bem diversificada entre frutos do mar, que em Portugal tomam o nome genérico de marisco, e cozinha brasileira.
Cheguei primeiro e escolhi uma mesa junto da calçada, em que se podia ver o mar e receber uma brisa fresca para tentar amenizar o calor carioca que, na altura, por volta das oito horas da noite, estava acima dos 35 graus centígrados. Samuel chegou poucos minutos depois, acompanhado de uma bela mulher, alta, loira e de olhos azuis. Samuel apresentou-a como uma jornalista inglesa que estava no Rio para fazer uma reportagem sobre os “pivetes”, gíria que designa as crianças de rua. Nesta crónica vou chamar-lhe Lara, pela sua semelhança com Julie Christie, a “Lara” do filme “Dr. Jivago”.
Samuel disse que Lara era uma amiga muito especial, mas pareceu-me que entre os dois havia algo mais do que amizade. Disse-me também que era uma pessoa interessada nos temas que costumávamos discutir nos nossos encontros, além de gostar de pesquisar sobre assuntos esotéricos.
- Sim? E já chegou a algumas conclusões? – Perguntei no meu melhor inglês.
- Embuste. – Respondeu Lara.
- Embuste?
- Sim, embuste. Esse termo era muito usado por Francis Bacon quando se referia às muitas correntes maçónicas e rosacruzes da sua época. Para ele, a maioria desses movimentos não passava de um embuste.
- Tenho a impressão de que não era bem assim. – Respondi. – Bacon não condenava propriamente esses movimentos, mas a credulidade e superstição a eles ligados.
- Vejo que você também tem pesquisado o assunto. – Disse Lara.
- É verdade. Bacon é um elemento crucial para o entendimento do que se passava no seu tempo a respeito da Fraternidade Rosacruz e do que se iria passar depois. Ele achava que toda a história sobre Christian Rosencreutz não passava de um embuste, no que estou de acordo com ele.
- No entanto ele caiu no próprio embuste. – Comentou Samuel, enquanto saboreava um pedaço de lagosta. – O seu livro “Nova Atlântida” está recheado de ficção e idealismo, um embuste que ele condenava nos outros.
Ao escrever estas palavras, neste momento, em finais da primeira década do século XXI, não posso deixar de pensar que, afinal, o mundo não mudou nada em relação à época de Francis Bacon. A mesma liberdade “provisória” resultante da grande crise da Igreja Católica que deu origem ao movimento da Reforma acontece hoje com o declínio do seu poder temporal. A grande diferença está talvez na seriedade de intenções: Bacon e Andrea preconizavam uma sociedade ideal cristã, livre dos vícios que a enfermavam na altura. Hoje essa seriedade parece não existir, pois o “embuste” faz parte, cada vez mais, de todas as igrejas e organizações que têm aparecido como erva daninha em solo fecundo. À falta dos aguilhões da Igreja do passado, as pessoas estão prontas a acreditar em tudo, desde que consigam um pouco de ilusão de segurança. A seriedade foi embora, dando lugar a um imenso “embuste” em todos os níveis e, à medida em que se vão descobrindo coisas do passado, graças aos avanços da ciência, mais esse embuste toma formas gigantescas.
- Você sabe que a Fraternidade Rosacruz não é muito bem aceite na Inglaterra. – Disse Lara.
- Porquê? – Perguntei.
- Por causa da sua associação à chamada “República de Cromwell”, no único período da história em que a Inglaterra deixou de ser uma monarquia. O inglês é mental e visceralmente monárquico. Na ausência do sistema monárquico ele sente-se perdido.
- Interessante, - comentei, - mas por outro lado foi em Inglaterra que nasceu a primeira Loja Maçónica, e foi em Inglaterra que nasceu uma coisa chamada “Golden Down”, uma espécie de ordem hermética e mágica, com referências claras ao rosacrucianismo. Era também inglês um dos grandes magos, chamemos-lhe assim, dos primórdios do século XX.
- Refere-se a Aleister Crowley, evidentemente…
- Sim, refiro-me a ele. Então não percebo porque é que o termo rosacruz é tão mal visto em Inglaterra.
- Pelo motivo que apontei antes. A magia faz parte da tradição inglesa que a herdou, provavelmente, dos celtas. Portanto, não há nada de extraordinário que Aleister Crowley, que foi considerado um mago, seja perfeitamente aceite, assim como organizações de pendor mágico.
Ao ouvir isto lembrei-me imediatamente das lendas do Rei Artur, ou Saga Arturiana, ou ainda Ciclo Arturiano, como já vi alguém chamar a um período difícil de localizar tanto no tempo como no espaço. Julga-se que essas lendas se terão passado cerca do ano 500 ou 700 da nossa era, numa tal de Bretanha, que também não se sabe se é a região do noroeste da França, ou alguma região da Inglaterra. De qualquer das formas, verdade ou não, os ingleses chamaram a si as honras da história, como se tivesse passado realmente em território britânico.
Não conheço ninguém que não se tenha sentido fascinado pelas lendas arturianas e pelos cavaleiros da Távola Redonda na sua busca do Graal, transformado mais tarde por imposição cristã na taça que teria recebido o sangue de Cristo. Mas o universo em que a saga se passa, apesar das adaptações cristãs, é um universo celta. Excalibur Merlin, a Dama do Lago, Avalon, Camelot, é todo um universo mágico muito próprio da cultura celta, apesar também de não se saber onde os celtas foram buscar essas coisas, talvez as tenham herdado de um povo misterioso que antes dos celtas habitaram a Península Ibérica e o sul da Europa, os lígures.
Aleister Crowley foi sem dúvida o expoente dessa tradição nos primórdios do século XX. Foi admitido na “Golden Down” nos finais do século dezanove, mas logo em 1900 foi nomeado líder da Ordem em Inglaterra. Figura polémica, foi considerado muitas vezes um mago negro e associado ao nº 666, o número da Besta no Apocalipse, mas isto tem alguma explicação. Esteve no México, onde tentou comunicar-se com entidades espirituais do mundo azteca. Vai para o Sri Lanka onde passa a dedicar-se à prática do ioga. Esteve em vários centros budistas da Índia e da Birmânia, onde realizou alguns estágios.
Mas a viagem mais importante e que marcou definitivamente a sua vida foi a viagem ao Egipto em 1904, com a sua companheira Rose Edith Kelly. Rose, que era médium, recebe a determinada altura uma mensagem de Horus destinada a Crowley, dizendo para ir ao museu de Boulak, no Cairo. No segundo andar Crowley descobriu-o dentro de uma caixa de vidro. Era uma estela em que Horus aparecia sob a forma de Ra-Hoor-Khuit. Curiosamente, o número de registo dessa figura no museu era o 666, o número da Besta, designação pela qual Crowley passou a auto-designar-se.
A experiência de contacto com Horus, o grande deus egípcio, filho de Ísis e Osíris, não ficou por aqui. Durante três dias Rose tornou-se o canal de Aiwass, mensageiro de Hoor-paar-Kraaat, o Senhor do Silêncio, que ditou para um Crowley estupefacto, pois nem ele mesmo queria acreditar naquilo, um texto anunciando uma nova era para a humanidade. Esse texto, dividido em três capítulos, foi posteriormente publicado sob o título “O Livro de Lei”. No primeiro capítulo é Nuit quem fala, o Princípio Feminino; no segundo é Hadit, o Princípio Masculino; no terceiro é o próprio Hórus que fala. Estas três entidades incumbiram Crowley de divulgar a sua mensagem.
- Falando de Crowley, - disse eu, - creio que, para além de todas as suas aventuras, ele foi o mensageiro da “Nova Era”. As transformações que o mundo sofreu durante este último século são tremendas. Será que o “Amor”, como anunciou Crowley no seu livro psicografado quando da sua viagem ao Egipto, é realmente o “motor” da “Nova Era”? Se ele era e se intitulava a si próprio, “A Grande Besta”, que amor é esse? Voltamos ao mito da “Queda” e da sedução?
Samuel e Lara olharam um para o outro, surpresos com a questão que eu colocava. Foi Samuel que respondeu.
- Essa é uma questão muito complicada. Primeiro teríamos que definir o que é o “Amor”, principalmente o amor anunciado pelos arautos dessa “Nova Era”. À medida em que o homem, e particularmente a mulher, se vem libertando dos grilhões do passado, participamos de uma sociedade cada vez mais permeável a vícios e violência. No meu tempo de estudante não me lembro de se falar em drogas. Hoje é o que se vê. No meu tempo as pessoas passeavam na rua, nos jardins. Hoje têm medo. Não me parece que seja esta a sociedade do “Amor”. Quando os manifestos rosacruzes foram lançados no início do século dezassete, preconizavam uma sociedade melhor, mas uma sociedade com princípios cristãos. Hoje até o próprio cristianismo está completamente desvirtuado. A religião perdeu o seu poder de regular a sociedade.
- De acordo. – Disse eu. – Não sei onde é que li isto, acho que algo acerca do misticismo, mas li que os maiores místicos eram aqueles que mais tentações sofriam para cair no vício e que era tremenda a sua luta para não se deixarem seduzir por essas tentações. Acho que faz algum sentido se pensarmos que o ser humano é um ser dual e que o santo e o demónio coexistem dentro de si. Mas voltando ao tema predilecto destas nossas conversas, a Fraternidade Rosacruz, o que me dizem dessa Fraternidade nos tempos actuais?
Desta vez foi Lara que respondeu
- O que existe hoje foi sendo criado ao longo do tempo, mas acho que teve origem numa certa explosão mística e esotérica que aconteceu nos finais do século dezanove e início deste século vinte. Há um autor inglês, de que não me lembro o nome, que classificou essa época como a “Era da Insanidade”.
- “Era da Insanidade”? – Estranhei.
- Julgo que ele classificou essa Era dessa forma porque aparentemente, nos finais do século dezanove e princípios do século vinte, antes do eclodir da Primeira Grande Guerra, tudo parecia misturar-se, religião e esoterismo apareceram em certos casos de mãos dadas, como foi o caso de Rudolf Steiner, que se envolveu com pastores evangélicos da Alemanha, que lhe pediram ajuda para a falta de espiritualidade que viam nas suas igrejas e, como resultado, Steiner acaba por ajudar a fundar uma nova igreja, a “Comunidade Cristã”.
- De facto, - atalhou Samuel, - são dessa época nomes muito importantes para o rosacrucianismo, incluindo o Steiner. Estou a lembrar-me de Helena Blavatsky e da sua Sociedade Teosófica, de Max Heindel e da sua Fraternidade Rosacruz, da figura mítica do Conde de Saint-Germain, de Papus, de Harvey Spencer Lewis e Aleister Crowley, de que já falámos.
- O que para aí vai… - disse eu. – Saint-Germain é muito anterior, século dezoito.
- Mas há relatos que afirmam que ele viveu antes e depois desse século dezoito. – Disse Lara.
- Acredita mesmo nisso? – Perguntei.
- Porque não? – Respondeu ela. – As pessoas acreditam em tanta falsidade, porque é que não posso acreditar que Saint-Germain viveu duzentos ou trezentos anos? Tudo faz parte do embuste.
- Quer dizer que essa Era da Insanidade significa apenas que tudo não passa de um embuste?
- Não necessariamente. – Respondeu Lara. – Para mim o embuste está no oportunismo de muitos que beneficiam do conhecimento de alguns.
- Não compreendo…
- Repare, - continuou Lara, - Samuel nomeou alguns nomes muito importantes que souberam, de alguma forma, ainda que não totalmente conseguida, alijar uma certa carga ancestral religiosa. O embuste está nos que se aproveitaram da situação com fins menos confessáveis.
- Como assim? – Perguntei.
- Tirando algumas correntes da Maçonaria que se mantêm fiéis à tradição e não procuram explorar ninguém, apesar de em alguns casos haver manifestações fortes de egos, tudo o resto é pompa e circunstância. É uma feira de vaidades.
Naquele momento pensei que Lara estava exagerando. Hoje, depois de muito pesquisar e de experiências frustrantes que me aconteceram, já não penso que tenha exagerado muito. De facto, com o declínio do poder temporal da Igreja Católica, assistimos à proliferação e inúmeras igrejas e seitas, que apenas existem na pressuposição de ajudar os que as procuram, mas que na verdade servem como meio de negócio, captando dinheiro dos seus membros. Não preciso de dar exemplos, é só olhar à nossa volta e ver o que se passa nesse aspecto. O mesmo acontece com associações ditas iniciáticas, ou filosóficas, ou esotéricas – é tudo negócio ou exposição de vaidades na tal pompa e circunstância que disse atrás. E o que dizer da enorme quantidade de “profetas” que enchem a Internet com as suas “profecias” de desgraça, prevendo e anunciando, naturalmente, o fim do mundo ou a passagem para um outro grau de existência que ninguém sabe o que é? Embuste é de facto a palavra certa para designar quase tudo o que se passa actualmente.
A noite já ia adiantada e a conversa parecia não ter fim, embora por vezes as ideias se repetissem, como já acontecera em anteriores conversas. Havia no entanto algo que me perturbava e que gostaria de ver discutido.
- Existe uma verdade que permeia todos esses movimentos e até muitas das religiões. – Disse eu. – De onde é que ela vem, foi criada por geração espontânea ou vem de longe, dos primórdios do tempo?
- Julgo que ambos os casos são verdadeiros. – Respondeu Samuel. – Por um lado há algo que nos vem dos tempos mais recuados e que tem vivido permanentemente na nossa lembrança. Foi assim que, apesar da imposição das “trevas” pela Igreja durante séculos, nada se perdeu. Por outro lado o ser humano é um criador, ele pode elaborar as ideias que lhe vieram da memória ancestral. Afinal, tudo se resume à Teosofia, que é a base dos ensinamentos desses movimentos filosóficos e esotéricos, enquanto as religiões se perdem nos meandros da Teologia. Parece que ambas são uma e a mesma coisa, mas não. É esta a diferença fundamental, entre aquele que procura o conhecimento de Deus através do aprofundamento interior, e aquele que resume a sua meditação à necessidade de provar a existência de Deus e a validade dos dogmas.
- A Amorc, fundada por Spencer Lewis, é também resultado da Teosofia? – Perguntei.
Samuel sorriu ao ouvir esta minha pergunta, que ele achava que eu tinha engatilhada há muito tempo, mas que nunca chegara a formulá-la.
- O estabelecimento da Amorc, - respondeu, - não foi nada pacífico. Lewis e Crowley lutaram durante muitos anos pelo domínio do mercado americano.
- Mercado?
- Sim, mercado. Não estranhe porque de facto era disso que se tratava. Spencer Lewis começou por fundar uma igreja na Califórnia. Essa foi a sua primeira experiência. Ele era o que se chamava na altura, um publicitário. Hoje chamar-se-ia, provavelmente, um especialista em “marketing”. Como tal ele vislumbrou que o mercado americano era um campo fértil para as ideias rosacruzes.
- Mas não recebeu ele um mandato para levar a Rosacruz para a América? – Perguntou Lara.
- Ele dizia que sim, que tinha recebido essa mandato numa iniciação em Toulouse, França, mas os seus detractores dizem que ele nunca foi iniciado em Toulouse, nem recebeu qualquer mandato. Se recebeu alguma iniciação terá sido na OTO (Ordo Templis Orientis), na Alemanha, com cujo grão-mestre manteve relações. Crowley era o representante da OTO na América. Lewis acabou por ganhar a guerra que manteve por muitos anos, pois Crowley foi à falência e a OTO deixou de influenciar as coisas na América devido à penúria em que entrou na Alemanha.
- Mas não respondeu à minha pergunta. – Disse eu.
- Ah! Se a Amorc é uma herdeira da Teosofia? Eu diria que sim, da mesma forma que a Fraternidade Rosacruz fundada por Rudolf Steiner na Califórnia, também deve muito à Teosofia. Há muito de Teosofia e Gnosticismo nas instruções aos membros. Lewis, inteligentemente, fez remontar esses ensinamentos ao Antigo Egipto, criando uma certa competição com a Maçonaria.
- Dizem até que Akhenaton terá sido o seu primeiro Imperator…
- É claro que não. Não sei porque é que atribuem a origem a Akhenaton, se não existe nenhuma documento antigo que comprove isso. Se a Amorc possui esse documento, que o mostre, para eliminar as dúvidas. Reportam-se também a Tutmés III, que teria organizado a primeira reunião rosacruz, mas isso é uma fábula. Mostrem os documentos que comprovem isso.
- Mas você acha, usando os termos de Lara, que a Amorc é também um embuste? – Perguntei.
- Não. Não acho que seja um embuste no sentido em que os seus ensinamentos são dos mais correcto que já encontrei. Dificilmente poderemos encontrar uma organização tão bem estruturada como a Amorc. Os seus ensinamentos são correctos e muito completos e preservam a liberdade de cada um, não impondo nada a ninguém. Nisso, Lewis e seu filho Ralph realizaram uma obra notável. Infelizmente não foi prosseguida pelos que continuaram a obra e é por isso que a Amorc está hoje em decadência.
- Essa decadência não será porque as pessoas hoje querem resultados imediatos e a Amorc oferece uma progressão de muitos anos?
- Também será por isso. Mas principalmente devido à forma como tem sido gerida ultimamente.
- Acha que pelo facto de ser uma organização aberta, quero dizer, que aceita qualquer pessoa desde que pague as quotas, terá isso contribuído para essa decadência?
- Esse é um dos motivos. Outro motivo será, em meu entender, a preferência que passou a ser dada à frequência dos Organismos Filiados em detrimento dos chamados membros de Sanctum, que garantia uma certa privacidade, tornando-se, na verdadeira tradição Rosacruz, membros invisíveis. A Amorc cometeu o erro de tentar atrair membros de Sanctum para os Organismos Filiados. Mas há outros erros.
- Outros erros?
- Sim. Por exemplo, o chamado quarto manifesto emitido pela Amorc e difundido pelo mundo inteiro, na presunção de que a Amorc seria a herdeira dos manifestos do século dezassete. Ora esse manifesto, pretendendo chamar a atenção para determinadas realidades infelizes do mundo de hoje, era em si também muito infeliz e, naturalmente, ninguém quis saber dele para nada. Por outro lado, assumindo-se como herdeira desses outros manifestos, é um erro lamentável, pois os primeiros manifestos foram originados dentro do cristianismo, propunham uma sociedade nova mas cristã. Se a Amorc se diz não religiosa, que aceita no seu seio qualquer religião, então não pode assumir-se como herdeira desses manifestos antigos.
- De acordo. E quanto ao martinismo?
Desta vez foi Lara quem resolveu responder.
- Existem várias escolas martinistas, a que está dependente da Amorc é uma delas. Segundo sei, o martinismo actual tem origem numa certa reconstrução efectuada por Papus e outros, supostamente baseados em antigas instruções de Saint-Martin. Provavelmente até é verdade, pois sabe-se que Saint-Martin não estava de acordo com invocações de figuras angélicas. Essa magia cerimonial introduzida por Pasqualy não está presente nas ordens martinistas actuais, embora certos rituais possam levar a pensar em magia cerimonial, mas ficam apenas na intenção, nada mais. Essa magia cerimonial terá sido levada por Willermoz para o seu Rito Escocês Rectificado da Maçonaria.
A noite já ia adiantada, mas antes de nos prepararmos para regressar aos respectivos hotéis, precisava ainda da opinião de Samuel e, talvez de Lara, sobre algo que parecia ter ficado obscuro nas diversas conversas que tivemos.
- Vocês acham que os “Invisíveis” existiram mesmo, como organização secreta e, por esse motivo, não identificáveis ao longo da História? E qual a necessidade de secretismo?
Foi Samuel quem respondeu.
- Acho que sim. Não como uma organização secreta, mas como uma corrente que veio trazendo determinados conhecimentos primordiais até aos nossos dias. Nessa corrente, os mais conhecidos foram os alquimistas. Mas não foram apenas eles os responsáveis por manter viva essa tradição primordial. Muitos outros desconhecidos, mestres desconhecidos, foram passando a palavra de geração em geração. Enfim, todos aqueles que contribuíram, de alguma forma, para a elevação do ser humano.
- E porquê o secretismo? – Insisti.
- O secretismo era importante, digo mais, essencial para a sobrevivência, pois não podemos esquecer o papel que a Igreja desempenhou na perseguição e morte dos hereges.
- Hoje esse secretismo continua a ser importante?
- Sim. Apesar as aparências, continua a ser perigoso trilhar determinados caminhos, e ninguém sabe o dia de amanhã. Não podemos esquecer que o fanatismo continua bem vivo. Alguém escreveu que o anonimato é a única garantia do mundo contra o mundo.
Esta foi a última vez que conversei com Samuel sobre a Fraternidade Rosacruz. É provável que alguma confusão tenha ficado nas várias conversas que tivemos e que transcrevi, na medida possível em que me lembrava do que falámos. É provável também que muita coisa tenha ficado esquecida. No entanto, quanto mais fui aprofundando as pesquisas acerca da história desses “invisíveis”, mais fui tendo a noção de que se tratou de gente muito especial, que apesar do perigo para as suas próprias vidas, conseguiram trazer até nós essa “luz” que nos vem do passado. Para eles o meu mais profundo respeito e reverência.