sábado, 10 de abril de 2010

Conversas com Samuel Dalatando

I – A Fraternidade Rosa-Cruz – 1ª Parte


Não vou dizer quem é Samuel Dalatando, pois este não é o seu verdadeiro nome e também porque sei que ele não gostaria de ser identificado. Assim talvez se fique a conhecer um pouco através das conversas que vou relatar, baseado apenas na minha memória, que acho que ainda é de confiar apesar de toda a subjectividade que um relato de conversas baseado apenas em lembranças pode implicar.
Encontrámo-nos diversas vezes, em diferentes cidades, como Lisboa, Madrid, Luanda, N. York, São Paulo e outras. Nessas alturas tivemos oportunidade de conversar sobre algumas coisas que nos fascinam, tanto a mim quanto a ele, além de, naturalmente, conversarmos sobre coisas corriqueiras. Parte desta conversa ocorreu em Frankfurt, na Alemanha. Não foi por acaso que falámos sobre a Fraternidade Rosa-Cruz, pois esta, como veremos, está intimamente ligada ao país germânico.
- A Alemanha – dizia eu enquanto almoçávamos num restaurante búlgaro numa rua próxima da Estação Central, um dos poucos edifícios poupado pelos bombardeamentos aliados durante a Segunda Grande Guerra – foi o berço onde nasceu a ideia de uma sociedade rosacruz, que depois se expandiu para o resto da Europa através de três manifestos, o primeiro dos quais se chamava “Fama Fraternitatis” e que teve como objectivo, pelo que penso, lançar a ideia de uma sociedade ou ordem de superiores invisíveis, que dominava a Europa de então.
- Estou de acordo, mas não devemos confundir duas coisas: a primeira é a de que a tradição rosacruz não nasceu na Alemanha, é muito mais antiga como sabe; a segunda é a de que não podemos separar a edição anónima desses manifestos das condições em que se vivia nessa altura na Europa.
- Bem, sobre a primeira razão, sim, a tradição é muito antiga, e há quem a reporte ao antigo Egipto, o qual a teria recebido da Atlântida. Mas a que condições se refere?
- Essa é uma grande história… mas temos tempo para falar dela, pelo menos da sua maior parte ou da parte mais importante.
- Então vamos lá.
- O século dezasseis foi um século muito complicado para a Europa. Complicado e sangrento. Foi o século da Reforma da Igreja, iniciada na Alemanha por Martinho Lutero. Na verdade a Igreja não foi reformada, foi dividida. E esta divisão teve consequências dramáticas para os povos envolvidos no cisma. A reacção católica foi o que se esperaria, considerando o histórico cruel de muitos séculos do seu braço regenerador, a Inquisição. Não podemos esquecer que ainda em 1600 Giordano Bruno foi queimado na fogueira depois de ser torturado durante oito anos. E foi aqui, em Frankfurt, que Giordano foi atraído para voltar a Veneza por um amigo que lhe prometeu ensinar-lhe técnicas de melhorar a memória. Esse amigo acabou por denunciá-lo à sagrada Inquisição.
- Mas a reacção católica teve particular expressão em França…
- Sim. Por ordem dos monarcas franceses os reformadores foram perseguidos e chacinados sucessivamente, culminando com a matança de São Bartolomeu, em que dezenas de milhares de huguenotes, assim se chamavam os reformadores franceses, foram mortos.
Enquanto o ouvia com profunda admiração, lembrava-me do nosso primeiro encontro, numa pequena pastelaria junto da Fonte Luminosa em Lisboa. O irmão que nos apresentou já partiu deste mundo. Foi um encontro rápido, enquanto tomávamos um café, mas suficiente para ter ficado com a impressão de nos conhecermos há muito tempo.
- Os movimentos surgidos na Alemanha – disse eu – no século seguinte foram uma espécie de reacção a essa perseguição, beneficiando entretanto da liberdade concedida nas regiões libertadas do domínio da cúria romana. Foi assim que surgiu a ideia dos irmãos rosacruz, uma fraternidade tornada invisível pelo anonimato dos manifestos.
- Certamente. Mas você acha que essa fraternidade invisível existia de facto?
- Acho que a publicação dos manifestos foi uma ideia genial, principalmente o primeiro, o “Fama Fraternitatis”. Porque através dele os invisíveis passaram a existir, mesmo que não tenham existido na realidade, pois não havia nenhum grupo denominado rosacruz.
- Foi realmente uma ideia brilhante – concordou Samuel. Uma ideia que não nasceu de um grupo, mas talvez de uma ou duas pessoas, embora houvesse um grupo que incluía alguns teólogos, ligado a uma universidade alemã, a universidade de Tübingen, se não estou em erro, que talvez tivesse contribuído com algumas ideias para a execução dos manifestos. O secretismo mantido ao longo dos séculos sobre a autoria dos manifestos, principalmente do primeiro, confirma que não foi ideia de um grupo, pois, se fosse o caso, alguém acabaria por quebrar o sigilo.
- Concordo, Samuel. No entanto parece não haver já muitas dúvidas de que o terceiro manifesto, “As Bodas Alquímicas de Christian Rosenkreuz” foi escrito por Valentin Andreae, um teólogo ligado a essa universidade de Tübingen. Ora, como o primeiro manifesto parece contar a história de Christian Rosenkreuz, embora não refira nenhum nome, apenas as iniciais C. R., e como o estilo entre a “Fama” e as “Bodas” é semelhante, é de presumir que foi Valentin o autor da “Fama Fraternitatis”.
- Provavelmente sim. Mas C. R. pode tanto significar “cristão rosacruz”, como “cristão renascido”, o que poderia significar coisas diferentes, mas na realidade não, trata-se da mesma coisa pois, o cristão rosacruz originado dentro da Reforma, é na verdade um cristão renascido. A Ideia dos manifestos era o renascimento cristão ou, o resgate do cristianismo original, não inquinado pela Igreja de Roma.
- Quer dizer que, ao contrário do que geralmente se pensa, essa fraternidade de irmãos invisíveis da rosacruz nasceu dentro do cristianismo reformador. De facto, logo no início da “Fama” se fala de Jesus Cristo. As de onde é que terão surgido as ideias dos manifestos?
- Essa é uma longa e complexa história. Na altura viviam-se tempos apocalípticos. Kepler, o astrónomo ou astrólogo do imperador do Sacro Império Romano, observou em 1603 uma conjunção de Júpiter e Saturno no signo de Peixes. Conhecendo ele os trabalhos de astrólogos judeus e árabes, pensou logo que essa conjunção tinha um significado especial. Outras ocorrências astrológicas levaram-no a concluir que uma situação semelhante havia ocorrido em 7 a. C., época considerada mais provável para o nascimento de Jesus Cristo. Ele calculou também, não sei em que é que se terá baseado, que idênticas situações astrológicas tinham ocorrido em datas importantes para a humanidade, como no tempo de Adão, Moisés, etc. Ele achava que algo muito importante estava para acontecer, talvez o nascimento ou aparecimento de um novo profeta, ou talvez a segunda vinda de Cristo.
- Mas não foi só por isso que se considerava que o fim do mundo estava próximo…
- Não, embora a segunda vinda de Cristo pudesse significar o juízo final bíblico. Mas logo em 1604 Júpiter e Saturno voltaram a aproximar-se, desta vez em Sagitário, confirmando as previsões fatalistas. Foi também nesse ano de 1604 que o mundo, ou melhor, a Europa, assistiu aterrorizada à explosão de uma supernova. Esta estrela permaneceu visível por mais de um ano. Para Kepler algo semelhante acontecera em 7 a. C., o aparecimento da Estrela de Belém.
- Imagino o susto das pessoas. Realmente deviam pensar que o fim estava próximo.
- De facto as pessoas viviam muito assustadas, para além do susto que os católicos tiveram com o misterioso aparecimento da “Fama” colada nas paredes de Paris, mas esta é uma história para outra altura.
- Sim, iremos falar dela.
- Voltando às estrelas e conjunções, - continuou Samuel – sinais inequívocos de fim do mundo eminente, em 1623 deu-se nova conjunção de Saturno e Júpiter, agora no signo de Leão. Isto teve um significado muito especial. Desde Paracelso que se acreditava no aparecimento de uma figura simbolizada pelo “Leão da Meia-Noite” e que seria uma figura redentora, talvez um príncipe do norte que daria continuidade à Reforma e aniquilaria o “império do mal” dominado pelo papa. Alguns astrólogos tinham previsto o segundo advento de Cristo precisamente para 1623, podendo este ser o Leão das profecias
- Isso é um pouco confuso, “Leão da Meia-Noite”, príncipe do norte…
- A constelação de Leão está no norte, próximo da Ursa Maior, daí a vinda de um príncipe do norte.
- Percebo agora. Mas como as profecias geralmente dão errado, não conheço nenhuma que tenha dado certo, também esta acabou por estar completamente errada. Não só não apareceu nenhum príncipe do norte, nem aconteceu o segundo advento de Cristo, nem o fim do mundo, mas estalou a guerra dos 30 Anos.
- Sim, uma guerra religiosa entre o Sacro Império Romano católico e os Estados protestantes da Alemanha. As não podemos falar de uma guerra de 30 anos, mas de trinta anos de guerras sucessivas, em que nem sempre a motivação religiosa foi a causa.
Chegámos ao fim do almoço naquele restaurante búlgaro cuja comida era muito parecida com a portuguesa. Samuel tinha que tomar um avião que o levaria para N. York. U iria voltar para Lisboa na manhã do dia seguinte. Continuaríamos a nossa conversa em outra altura, talvez em Paris, onde Samuel tinha um compromisso cerca de um mês mais tarde.
Caminhando pelas velhas ruas do centro de Frankfurt de volta para o hotel, numa tarde primaveril já beirando o verão, pensei nos estranhos desígnios do povo alemão. Fora ali que havia sido lançada a ideia rosacruz, a ideia de uma fraternidade invisível que prometia modificar a sociedade, libertando-a de corrupções e tornando-a mais fraterna; fora ali, mais precisamente na Áustria, que nascera o criador da Psicologia e era ali que vários grupos continuavam a desenvolver as ideias de Freud e Jung, ainda que este fosse suíço, mas um suíço de língua alemã; fora ali que o “ovo da serpente” havia dado nascimento ao nazismo, como todas as trágicas consequências que mancharam para sempre a história recente da humanidade. O mal e o bem viviam lado a lado, ocupando contudo o mesmo espaço na mente de cada um.
No momento em que escrevo esta espécie de memórias, também não posso deixar de pensar que vivemos novamente tempos apocalípticos. Já não são as estrelas e as conjunções astrológicas os principais protagonistas, ainda que estejam também presentes, mas é o aquecimento global e, principalmente, o fatídico calendário maia que prevê o fim do mundo para 2012. Talvez seja tempo do aparecimento de uma nova fraternidade de invisíveis.